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EP.5. FAMÍLIA

MAYA

9h

quarta


Hora do intervalo!

Eu e os demais colegas saímos da sala, muitos indo em direção ao refeitório para pegar o lanche matinal. Eu fui um deles. Tinha combinado de encontrar com Duda.

Depois de duas semanas de aula, eu podia dizer que eu já estava bem adaptada, assim como os demais calouros. Duda continuava usando quase todo seu tempo livre para jogar com o time, o que era seu hobbie e também seu esporte. Como ela tinha sorte! Eu tinha que correr da estufa para a quadra três vezes por semana.

Eu já tinha percebido como ela falava muito sobre Guilherme, o capitão do time de e-sports. Ela jogava muito em dupla com ele, e às vezes eles eram os últimos a sair da sala.

Sobre mim, a parte mais difícil nem vinha sendo a faculdade, o clube, o time, ou mesmo conciliar os horários. Meu maior desafio era lidar com um namorado com transtorno de personalidade. Ele nunca chegou a fazer um pedido oficial, mas estava claro pelo nosso comportamento. Felipe estava mais seguro comigo, mas Vermelho continuava sendo uma pedra no sapato.

— Senhorita Fujita! — ouvi uma voz masculina e adulta me despertando dos devaneios que fazia no caminho para o refeitório.

Me virei para encontrar o supervisor geral, Chung Ho Kim. Ele estava usando seu habitual terno com suéter e um crachá. Digamos que ele era o intermédio entre a diretora Hyeri e os alunos. Ou seja, se estava me procurando pessoalmente, eu não conseguia imaginar o que poderia haver de tão grave.

— Supervisor Kim? Algum problema?

— Não, nada demais! — garantiu ele. — Eu recebi há pouco uma informação externa que iria te passar por mensagem, mas como te vi achei melhor já te falar.

Aquilo só me deixou mais curiosa.

— Tudo bem. Qual é a informação?

— O seu tio está vindo te visitar.

Senti meu corpo gelar por um instante, mas consegui não deixar transparecer muito.

— Nem sabia que isso era permitido — confessei.

— Bom, isso é um internato, por assim dizer. Vocês não são proibidos de sair, mas também é possível receber visitas, se avisadas com antecedência.

— Certo. Quando ele vem?

— Hoje mesmo. Deve chegar na parte da tarde, por volta de 14h.

— O horário do meu clube de jardinagem.

— É, eu sei, querida, mas hoje você não precisa ir. É uma atividade extracurricular que não conta pontos.

— Entendi.

— Você pode encontrá-lo na estação e levá-lo a um dos espaços de convivência. É permitido explorar os espaços comuns, e ele ficará até, no máximo 17h, já que você tem treino.

— Claro.

— Agora eu preciso ir. Bom dia para você!

— Igualmente, supervisor.

Esperei ainda uns dois segundos depois da saída dele, enquanto me recuperava um pouco daquela conversa, e continuei meu rumo para o refeitório, sem a mesma animação.

Depois de passar pela fila, peguei meu lanche e fui sentar com Duda, que já estava lá.

— Oi, roomie! Eita, que cara de enterro é essa?

— O supervisor Kim acabou de me dizer que meu tio vem me visitar. Eu nem sabia que os parentes podiam visitar!

— Também não — disse ela, mordendo seu pãozinho. — Mas isso é tão ruim assim? Você não gosta do seu tio?

— Mais ou menos. Ele não é horrível, sabe, Duda, mas… é um pouco rígido. Digamos que ele não me deixava viver minha vida como uma adolescente comum. Por isso eu decidi vir pra Drim.

— O quê? Uau… Acho que você é a única aluna da Drim que não veio para cá porque sonhou com isso a vida inteira. Por causa de uma pressão familiar e social, é claro.

— É, eu tô ligada, mas… em Mirai, não tem muito isso. Lá é tudo muito interno, e os pais geralmente preferem que os filhos estudem em faculdades locais.

— Mas até que tem um bocado de miraianos por aqui.

— É, tem, mas… Meu tio não pensava assim. Ele não ligava muito para qual faculdade eu iria. Preferia se preocupar com: onde eu estava indo, com quem eu estava indo, que horas eu voltaria…

— Nossa, que cárcere! Acho que tô começando a entender.

— Pois é. Eu nunca fui de dar trabalho, sabe? Meu pai me fez gostar de ficar em casa, cuidar das plantas, até ajudar nas tarefas. Com ele, tudo isso era encantador. Mas meu tio é diferente.

— Há quanto tempo seu pai faleceu? — perguntou Duda, com voz mais baixa. Eu a encarei, processando a pergunta.

— Meu pai não faleceu. Bom, pelo menos eu acho que não. Espero que não.

— O que rolou com ele?

— Foi pro Exército, como minha mãe. Ela foi bem antes, então eu me apeguei bem mais ao meu pai. Só que, há alguns anos, ele também foi. Poderia ter me deixado aos cuidados da minha tia, como fez com meu irmão, mas não… Preferiu trazer meu tio para cuidar da nossa casa e pediu que eu ficasse para ajudá-lo.

— Seu irmão é aquele da foto?

Assenti.

— Eu aposto que está sendo bem mais divertido lá, na casa da tia Cristal. Ela tem duas filhas, gêmeas, e a filha do meu tio também está lá. Ou seja, ele tem três primas para se divertir, além da tia Cristal, que é bem mais legal.

— Nossa, então você teve um belo azar — comentou Duda. — Mas relaxa. Você já está aqui, ele só vai te ver, não vai te levar de volta. Se você vê-lo mais como um tio distante do que como um carcereiro, nem vai ser tão ruim.

Concordei, tentando me animar.

Terminamos de lanchar e, depois, voltamos para as salas de aula. No caminho, mandei mensagem para Felipe.


___________________________________________________


Maya

Não vou ao clube hoje. Compromissos familiares. 🙁


Felipe

Tudo bem. Acha que dá pra gente se ver depois? Antes dos treinos.


Maya

Acabo às 17h.


Felipe

Ok. Me encontra do lado de fora da estufa.


Maya

Combinado!


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MAYA

14h

quarta


Pontualmente, estava na estação que ficava em frente à Drim University. Era a segunda vez que eu saía do campus. A primeira foi um passeio pelos arredores, já que Sunny fez questão de mostrar a mim e a Duda o que tinha por ali.

Passados poucos minutos, chegou um trem vindo de Mirai. A porta se abriu e algumas pessoas desconhecidas saíram. Atrás delas, eu vi meu tio Mateus, sem muita pressa de sair.

Ele era um homem alto e loiro, com uma fina barba e roupas azuis de mago. Como de costume, usava um tipo de terno que parecia ter saído de um conto de fadas, mas a expressão séria (não brava, apenas sem emoção) não combinava muito.

Ele olhou para o lado, estendendo a mão, o que me fez franzir o cenho. Então, mais pessoas apareceram na fresta da porta.

Primeiro, Myke, meio irmão mais novo. Isso já me fez sorrir de orelha a orelha e meus olhos brilharem. Ele era um adolescente de 15 anos, negro usando um conjunto de blusa social, calças e suspensórios em tons dessaturados de verde. Ele também sorriu ao me ver.

Depois, as pequenas gêmeas de 9 anos. Eram idênticas, ambas magas loiras com vestidos azuis e iguais, com uma estampa primaveril. Por fim, Jessie, a filha do tio Mateus, uma druida de 17 anos usando um vestido verde escuro bem sóbrio.

Tio Mateus os empurrou levemente pelos ombros, incentivando-os a sair do trem. As gêmeas tomaram o maior cuidado ao passar pelo vão e, depois, correram para me abraçar.

Cumprimentei meu irmão e minhas primas com grandes e animados abraços. Até que, enfim, chegou a vez do tio Mateus.

— Eu convenci a Cristal a me deixar trazê-los para te ver — ele disse.

Eu sorri.

— Que bom. Foi uma ótima surpresa.

Ele assentiu. Não vi nenhuma abertura para abraço ou qualquer outro cumprimento, então os chamei para partir.

— Vamos? Quero mostrar tanta coisa a vocês!

No segundo seguinte, estávamos caminhando para fora da estação. As crianças deram as mãos para atravessar, enquanto tio Mateus começava a fazer mil perguntas.

— Como é a alimentação aqui? Você está comendo direito?

Me segurei para não revirar os olhos.

— Sim, estou comendo muito bem. As refeições são supervisionadas por nutricionistas, então é tudo bem equilibrado, e também é saboroso.

— Seu quarto é decente?

Atravessamos.

— Claro! É um quarto dos sonhos, mesmo dividindo com outra garota. Ela é ótima pessoa, nos tornamos amigas.

— Que bom, Maya. Ela é de onde?

Comecei a ficar um pouco irritada.

— Por que isso importa?

— Só quero saber — ele disse, como se fosse óbvio. — Só curiosidade.

— Ela é de Dominus.

— Legal. São boas pessoas para criar vínculo.

Claro. As pessoas mais ricas de Jesver vêm de Dominus. Para um camponês, ele pensava muito em dinheiro.

Entramos no campus e eu desatei a falar sobre ele, na expectativa de que as perguntas parassem. Fui apontando para os lugares e explicando, enquanto caminhávamos para um dos “quiosques”, como eram chamados. Era uma das áreas de convivência citadas pelo supervisor Kim.

— Daquele lado fica o ginásio, as principais quadras.

— Você tem feito algum esporte?

— Sim, tio, eu entrei em um time de vôlei.

— Ótimo! Vôlei é um ótimo esporte, e bem seguro.

Dei um suspiro para manter a calma. Chegamos ao pergolado.

— E as aulas, Maya?

— Ah, você sabe… Diplomacia. As matérias são um pouco chatas, mas não é nada complicado. Eu preciso ler bastante.

— E você odeia isso, né… — brincou Myke, fazendo as meninas rirem, e eu também.

— Só que não são os tipos de livros que eu leio, Myke. São bem mais sérios.

— A gente pode ver o seu quarto? — perguntou Annabeth, uma das gêmeas, empolgada.

— Eu gostaria, mas não é permitido. Vocês só podem ver as áreas comuns. Não muito mais além do que dá pra ver daqui.

— Qual é sua parte favorita? — perguntou Jessie.

Meu sorriso se abriu.

— É a estufa.

As meninas fizeram careta.

— Eca! — disseram juntas.

— Com um câmpus deste tamanho, — disse Myke — jura que o que mais te interessa é exatamente mais do que temos em casa?

— É o que eu gosto — eu disse, encantada com a memória da estufa em minha mente. — E quase todos lá são miraianos, então eu não sou uma exceção. A diferença é que aqui temos uma estrutura gigantesca, espécies novas, ferramentas profissionais…

— Você tinha tudo isso em casa — argumentou tio Mateus.

— É, mas… mesmo assim, é diferente.

— Acho que a maior diferença está nas companhias — disse Jessie. — Deve ser legal plantar junto com outros jovens.

Eu abri um sorriso bobo, pensando na minha companhia preferida.

— É. Todos aqui são muito legais.

Continuamos conversando por mais um tempo. Depois de poucos minutos, meu tio assumiu uma expressão de desconfiança, olhando para um ponto além de mim, com o cenho levemente franzido.

— O que foi? — eu perguntei, e olhei na direção suposta. Lá, estava Felipe, encostado em uma pilastra do varandão.

— Alguém nos observa — disse meu tio, com um tom acusador.

— É só um amigo do clube de jardinagem — eu disse.

— Conhece esse garoto? — perguntou meu tio.

“Ah, pronto, começou”, pensei. Não queria um dia ter que discutir o assunto “garotos” com tio Mateus.

— Conheço — eu disse. — Como eu disse, ele é do clube de jardinagem. É um miraiano.

— Eu sei bem que ele é um miraiano. Ele morava perto da minha casa, todos na vizinhança ficaram sabendo do que aconteceu na família dele.

Franzi o cenho.

— O que aconteceu?

Tio Mateus olhou para todas as crianças, incluindo sua filha.

— Jessie, porque não leva os pequenos para explorar os jardins?

Jessie deixou os ombros caírem. Já tinha entendido o recado.

— Tudo bem — disse ela, com tédio, já se levantando.

— Só uns instantes, filha. Obrigado.

— Vamos, crianças.

— Quem chegar por último no pinheiro morre! — disse Annalice, e os mais novos começaram a correr. Jessie foi atrás deles.

Depois de se certificar que estavam a certa distância, tio Mateus se voltou para mim com seu olhar bem sério.

— Aquele garoto — disse ele. — Ele matou a própria irmã.

Meu corpo todo se arrepiou. Aquilo não era uma coisa legal de ouvir. Especialmente, não sobre o garoto que você beija com frequência e que quase considera seu namorado. Apesar disso, eu já tinha minha suspeita de quem realmente havia feito aquilo.

— E você sabe disso por causa de um boato da vizinhança?

— Não é só um boato! Saiu nos jornais, e todo mundo ficou sabendo. Colocaram como “acidente” nas manchetes, mas ninguém acredita realmente nisso. — ele suspirou. — Se eu fosse você, me afastaria desse rapaz.

Fiquei parada por um tempo, analisando, mas estava com mais raiva do meu tio do que medo por Felipe.

— Isso é tudo o que sabe sobre ele?

— É — ele deu de ombros. — Foi há muito tempo, eu não pesquisei a vida dele ou me atentei a detalhes, mas… Não é o tipo de manchete que se esquece. Caso Amanda Rider. Pobre menina. Era tão nova…

Ouvir o sobrenome me trouxe a sensação estranha novamente. Era apenas uma confirmação de que meu tio não estava confundindo a feição, o que seria bem possível. Comparando uma foto antiga de jornal com um rapaz à distância que ele estava… Um jeito fácil de confundir duas personalidades.



MAYA

16h47

quarta


Fiquei aturando meus parentes até a hora combinada. Foi até meio divertido pelas crianças, mas eu não conseguia me sentir bem depois do que tio Mateus disse.

Acompanhei-os até a estação e voltei para o campus, rumando para a estufa. Estava pensando como iria me comportar com um provável assassino, mas esse sentimento se dissipou quando eu cheguei lá. 

Felipe estava sentado na grama, sobre uma toalha azul, ainda dando os toques finais na organização de várias comidinhas que ele tirava de um caixote forrado. Um piquenique. Fui obrigada a sorrir.

Não acusei minha presença imediatamente. Fiquei um tempo de longe, observando ele todo preocupado, todo cuidadoso. Quando ele já tinha terminado de tirar tudo e estava só ajustando os itens, eu comecei a me aproximar. Ele olhou para mim e abriu um sorriso tão lindo e genuíno que aqueceu meu coração.

— Que coisa mais fofa! — eu comentei, quando terminava de chegar.

— Pode ficar à vontade, princesa. Tudo isso é pra você.

— Pra nós — eu corrigi, me sentando no espaço vazio do tapete.

Felipe foi me explicando as opções, embora estivesse tudo muito visível. Comemos algumas coisas em silêncio, só nos observando.

— Então, você tava me espionando mais cedo — comentei.

— Ah — disse ele, meio encabulado. — Confesso que fiquei um pouco curioso. Mas eu reconheço que não devia ter feito isso.

— Não foi nada demais — garanti.

— Foi tranquilo, esse reencontro?

— Mais ou menos — eu disse, feliz por poder desabafar depois da tarde meio tensa. — Quando eu soube que meu tio viria, eu fiquei preocupada. Não gosto muito da forma como ele me controla… mas quando as crianças apareceram, eu fiquei muito feliz.

Ele sorriu.

— São seus irmãos?

— Só o menino, Myke. As meninas são minhas primas.

Felipe assentiu.

— É normal se dar melhor com a própria geração do que com os mais velhos.

Senti que era uma boa oportunidade de introduzir o assunto.

— Você tem irmãos? 

Foi perceptível que a expressão dele mudou. O meio sorriso sumindo, o olhar abaixando um pouco.

— Eu tinha uma irmã — contou ele. — Amanda. Mas ela faleceu há alguns anos.

Pressionei os lábios. Eu fiquei realmente sentida, mas queria mais explicações.

— O que aconteceu com ela? — arrisquei perguntar, em voz baixa.

Ele inspirou, e seu tom se tornou pesaroso.

— Eu não sei direito, mas foi por causa do Vermelho. Foi algum tipo de intoxicação, mas ele diz que foi um acidente.

— E você acredita nele?

Ele me encarou.

— Eu preciso — ele disse, com a voz um pouco falha. — Como eu vou permanecer no mesmo corpo de um cara que matou minha irmã de propósito?

Por um tempo, eu fiquei sem ter o que dizer. Então, eu apenas o abracei para confortá-lo. 

— Desculpa ter te feito falar sobre isso — eu disse.

— Tudo bem. Eu precisava te contar isso, algum dia. 

Ele se separou de mim, sem se afastar muito. Eu contornei o rosto dele, querendo protegê-lo do mundo. Estando tão perto, minha vontade era beijá-lo, mas não era o momento.

— É muito bizarro eu querer te beijar agora? — perguntou ele.

Um sorriso se desenhou nos meus lábios. Nossos sentimentos estavam muito sincronizados.

— Não — eu sussurrei, começando a fechar os olhos, que era tudo o que eu podia fazer.

Ele eliminou o que restava de distância e me beijou. Eu continuei segurando o rosto dele, para sentir que ele estava comigo e que eu o estava confortando.

Eu queria chegar mais perto dele, mas aquele era um espaço menos reservado que os demais onde costumávamos ficar. Por isso, preferi manter como estava.

Não nos demoramos muito, porque não tínhamos muito tempo sobrando. Continuamos aproveitando o piquenique enquanto o Sol se punha. Depois, afastamos o que sobrou e deitamos naquela grama. Me aninhei no peito dele e ficamos apenas existindo.

Quando estava quase completamente escuro, ele se pronunciou.

— Você quer saber o que aconteceu?

Eu franzi o cenho.

— Como assim?

— Com Amanda. Como eu matei ela.

Me levantei de súbito, sentando na grama e já virando para encarar os olhos vermelhos. Eu deveria ter percebido pelo tom de voz, mas, depois daquele cochilo, não estranhei o tom embargado.

— Não levanta — pediu Vermelho, franzindo o cenho.

— Quer que eu fique grudada em você? Não é meu namorado — pronunciei a última frase com ênfase.

— Eu sei, mas esse é o preço da verdade. Não é nada demais, é só continuar deitada comigo, igual nos últimos dois minutos.

— Algum motivo pra inventar esse joguinho estúpido?

Ele revirou os olhos, impaciente.

— Não é joguinho, Maya — ele soou chateado. — Eu só não quero contar isso olhando direto pra você. É pesado, sabe? Por que você pode confortar Felipe, mas não a mim?

Ergui os ombros, sinalizando que era óbvio. 

— Eu nem sei por onde começar a te dar motivos.

Ele me encarou por mais um segundo e virou o rosto para o outro lado. Acho que ficou realmente chateado. Revirei os olhos, impaciente com minha própria decisão.

Não iria me aconchegar nele, tinha zero condições. Mas eu estava muito curiosa, então deitei no tapete ao lado dele.

— Serve assim?

— Serve.

Ele deu um longo suspiro, sinalizando que ele estava se preparando para a história. Demorou ainda alguns instantes para começar.

— Eu devia ter uns 10 anos. Estava na estufa da nossa casa. Eu sempre gostei da alquimia miraiana, ficar misturando plantas e fazendo poções. Naquele dia, eu estava fazendo um pesticida para destruir os insetos que estavam acabando com os pés de hortelã. Faltava um ingrediente, um atenuante, obtido por uma folha de uma planta que ficava do lado de fora. Eu fui lá pegar; não demorei, mas foi o suficiente. A pequena Amanda entrou na estufa, viu a poção pronta com os ingredientes ao lado e… sei lá, acho que ela concluiu que era um suco. Quando eu cheguei, ela já estava no último gole. Eu a chamei desesperado, dizendo que ela não deveria ter tomado aquilo. O efeito foi imediato. Eu a notei ficando sem ar e, em menos de dez segundos, ela estava no chão. 

Ele deu mais um suspiro. Eu não podia olhar para ele, mas imaginava que seus olhos estivessem cheios de água.

— Então, foi mesmo um acidente.

— Você duvidou disso? Pode parecer surpreendente para você, mas ela também era minha irmã, eu a amava. Eu me senti tão mal por ter deixado a poção exposta, mesmo que por uns instantes… e por nem ter tentado o antídoto.

— Não teria dado tempo. Se ela caiu em dez segundos, era uma poção muito forte.

— Já tentei me convencer disso, mas não adianta. Mesmo se eu não tivesse conseguido salvá-la, só de ter tentado eu já me sentiria menos culpado. Mas eu só fiquei paralizado, sem conseguir fazer nada.

Senti um gosto amargo na boca. Não era fácil ouvir aquilo.

— Não foi sua culpa.

— Tente dizer isso para um menino de dez anos. Me culpar foi tudo o que eu fiz nos meses seguintes, e no escuro era ainda pior.

Ele deu o suspiro mais longo de todos. Depois, se levantou rapidamente, ficando sentado. Ainda pensativo.

Me levantei um pouco, ficando apoiada nos cotovelos, observando-o.

— Obrigada por me contar.

— Eu agradeço por ouvir. A questão é… você acredita em mim?

Eu não sabia se deveria. A história foi convincente, a explicação também… mas era ele.

— Ainda estou pensando sobre isso.

Ele se virou para mim, parecendo surpreso e bravo.

— É sério? Eu me abri pra você. Foi a primeira vez que falei sobre isso depois de todos esses anos. Por que eu mentiria?

Eu me sentei ficando na mesma altura que ele.

— Eu não sei, Vermelho. Você tem esse jeitinho bem… peculiar.

Ele deu uma risadinha irônica.

— Ok, eu sei que eu posso ser um pouco grosso e sincerão com algumas pessoas, mas isso não quer dizer que eu não seja confiável. Não quer dizer que eu mataria a minha irmã. Eu não sou um psicopata!

Ele estava realmente irritado.

— Isso é exatamente o que um psicopata diria.

Ele fechou o punho e chegou a tremer um pouco, enquanto rangia os dentes. Eu cheguei a recuar um pouco. Ele dissipou a tensão com uma risada incrédula.

— Olha, Maya… — ele disse entre os dentes. —  Você tem sido bem irritante desde o início. Parece querer tirar a minha paciência. — Ele ficou muito sério de repente. — Se eu quisesse matar você, eu já teria feito isso.

Ele se levantou completamente, de súbito, e saiu andando.

Eu fiquei observando, tentando processar tudo aquilo, enquanto me preparava para o retorno.

Quando ele estava quase no varandão, ele parou por alguns segundos. Então, se virou para mim com os olhos verdes e a expressão confusa. Felipe voltou andando.

— Ele fez de novo, né?

— Sim — eu disse. — Mais um showzinho com saída triunfal.

Felipe se sentou ao meu lado, bem perto de mim.

— Eu sei que temos um pacto pra você não me contar nada do que ele diz, porque sempre é algo bem merda, mas… nenhuma chance de você me contar? — perguntou ele, todo inocente.

A última frase ainda ecoava na minha cabeça. Uma ameaça em pretérito.

Decidi omitir isso.

— Ele contou o que aconteceu com Amanda — revelei. — Mas nem adianta, eu não vou contar. Se quiser, pergunte a ele.

Felipe sorriu, como se nada daquilo importasse.

— Tudo bem. Estamos sem tempo — ele se levantou, tão rápido quanto sentou, e estendeu a mão para mim. — Vem, amor, temos que ir pro treino.

Um sorriso se formou lentamente enquanto eu segurava a mão dele.

— Do que você me chamou?

Ele deu uma daquelas risadas envergonhadas.

— Desculpa — ele disse, enquanto eu me levantava, e olhou nos meus olhos.

— "Desculpa" nada, eu gostei. Você… quer oficializar alguma coisa?

Mais um riso tímido, com ele olhando para baixo. Era bobo como uma criança. Me senti feliz por ter encontrado alguém assim, como eu.

— Então… — disse ele, coçando a cabeça, o que já me preocupou. — Na verdade, o piquenique era pra isso, mas começamos esse papo todo de morte e eu achei melhor deixar pra lá.

— Huhum — eu disse, em tom bem irônico, porque eu não queria deixar pra lá. — Quer que eu peça?

— Não — ele se apressou em dizer e se adiantou para mais perto de mim, como se fosse compartilhar um segredo. — Não — e repetiu, com a voz leve. —  Eu cuido disso.

Ele puxou uma mecha do meu cabelo para trás da minha orelha.

— Eu queria dizer todo um texto bonitinho, mas… devido ao tempo, eu vou me contentar em admitir que eu estou completa e perdidamente apaixonado por você. Maya, você quer ser minha namorada?

Eu precisei rir, um riso genuíno de contentamento. Aquelas palavras eram tão lindas e felizes que eu não tinha outra reação. Segurei o rosto dele.

— Sim, eu quero ser sua namorada.

Nos beijamos naturalmente, porque não havia outra coisa a se fazer. Mesmo estando atrasados, ficamos mais meio minuto ali, só comemorando e sentindo. Entre os beijos, procurei dizer só o que estava faltando.

— Eu te amo.

Ele sorriu.

— Eu te amo.

Me beijou mais uma vez.

— E nós ainda temos treino.

— Eu sei — eu disse, rindo, e me afastando um pouco. — Quer ajuda com essas coisas do piquenique?

— Não, não. Corre lá,  seu treino é mais importante que o meu.

Dei um último sorriso e saí correndo. Literalmente, tive que correr, mas não pelo atraso; porque encontraria mais alguma desculpa para ficar perto dele se eu não saísse bem rápido.


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