EP. 2. JOGO
- Jéssica Sanz
- 22 de jan.
- 20 min de leitura
DUDA
11h45
segunda, primeiro dia de aula
Depois de passearmos um pouco pela feira de atividades e pelo campus, Maya me levou para o nosso quarto, que ela já tinha encontrado.
— Eu escolhi o lado direito, espero que não se importe.
— Não, tá de boa! Relaxa.
O lado direito estava decorado com as coisas de Maya. Era tudo muito claro e gracioso, com elementos verdes e azuis, algumas plantinhas e um pequeno set de alquimia miraiana. O lado esquerdo estava vazio, e o banheiro ficava no meio, tomando metade da profundidade do quarto. Dava certa privacidade para os lados.
Peguei minha guarda-tudo e invoquei meu quarto. Estava um pouco bagunçado como deixei, mas minha estação gamer estava ali, assim como minha cama e meu guarda-roupa. Comecei a organizar as coisas. Não só para guardar o que estava desarrumado, mas também para adaptar tudo ao novo espaço.
— Eu vou esperar você para irmos almoçar — explicou Maya, pegando um livro para ler.
— Tudo bem, eu não vou demorar.
Mais tarde, conhecemos o refeitório. O primeiro dia não teria aula, então ficamos explorando o campus.
— Você não se inscreveu em nenhuma atividade, né? — disse ela, puxando assunto, enquanto caminhávamos.
— Ainda não, e nem sei se vou. Eu prefiro passar meu tempo livre jogando.
— Eu entendo — ela riu um pouco.
— E você? Também não vi se inscrever em nada.
— Você chegou logo depois que eu me inscrevi no clube de jardinagem. Por enquanto é tudo que eu penso em fazer, mas também estou aberta a opções. Talvez eu tente algum esporte. Estou precisando mesmo me exercitar. Mas vou ver como vai ficar minha gestão de tempo.
— Eu não sou muito desses esportes de atlética, mas eu treino taekwondo. Acha que tem isso aqui?
— Em questão de artes de combate, deve ter de tudo. Tem curso disso aqui, não tem?
— Tem, mas eu não vi nada do tipo na feira de atividades.
— Também não. Eu gostaria de fazer alguma atividade assim. Melhor do que jogar bola.
— Vamos procurar. Onde fica o curso de Artes de Combate? Essas coisas devem estar todas lá.
Pedimos informação a um aluno com cara de calouro, e fomos para o bloco indicado. Começava com um hall no térreo e tinha alguns banners de diferentes artes de combate. Continuamos explorando, e chegamos a um corredor com várias salas. Não demoramos a ouvir sons de treinamento.
Ao lado de cada sala, havia um banner indicando o que estava sendo treinado ali.
— Olha — eu disse. — Sala de artes marciais. Sala de armas de fogo. Sala de esgrima. Isso é demais!
— Sala de arqueria — notou Maya. — Tem de tudo, mesmo.
— Posso ajudar, moças? — perguntou uma voz atrás de nós. Nos viramos e encontramos um adulto com roupas confortáveis de treinamento. Ele tinha feições de soulense. — Vocês parecem perdidas.
— Ah, é que nós queríamos saber se tem como participar dos treinamentos daqui.
Ele franziu o cenho.
— Vocês são desse curso?
— Na verdade, não — eu disse. — Eu sou de Literatura, e ela…
— Diplomacia — disse Maya, prontamente, com um sorriso.
— Entendi… Bom, as salas daqui são para as aulas do curso, não são consideradas atividades extras. Nada da feira interessou a vocês?
— Jardinagem — disse Maya, um pouco entediada. — Mas eu queria algo mais legal.
— Eu entendo. Também acho isso aqui muito mais interessante, mas… Infelizmente, não é permitido para alunos de outros cursos. Mas, às vezes, abrimos projetos de extensão; recomendo que fiquem de olho nos editais. Quais treinamentos interessam a vocês?
— Taekwondo — eu disse.
— Arqueria — contou Maya.
— Você — ele disse a Maya — poderia entrar no time de volêi e treinar sua mira. E você… talvez cheerleading.
Não segurei uma risada.
— Cheerleading? Fora de cogitação. Eu conheci o time, eles são legais, mas uniforme apelativo, laçarote e sorrisão não são pra mim.
O professor deu uma risadinha, parecendo se indentificar com a minha colocação.
— Tudo bem. Olho nos projetos de extensão. Se precisarem, me procurem. Sou o treinador Alfa.
— Pode deixar! — eu disse.
— Muito obrigada! — disse Maya, enquanto nos afástavamos. Então, ela se voltou para mim, e sussurrou. — Mas você tem um laçarote!
— Isso aqui? É um laço comum, não um laçarote. E que nome é esse, Alfa?
— Claro que é um apelido, né, Duda.
— E ele deve ser muito importante pra ser chamado de Alfa.
Voltamos para o quarto. Mais tarde, nos preparamos para a festa dos calouros e descemos para o pátio.
DUDA
21h15
segunda, festa dos calouros
Pelo que Maya contou ter ouvido na recepção, era uma tradição da Drim, mas “festinha” seria a palavra mais adequada. Um pouco de música, um pouco de refrigerante e muita socialização no pátio das atividades.
O pátio estava consideravelmente lotado. Não tinha nenhuma decoração especial, era apenas o mesmo espaço sem as mesas da feira de atividades, iluminado pelos refletores. Achei que só teria calouros, mas eu identifiquei pontos roxos e vermelhos das atléticas, provavelmente marcando território.
— Olha aí, a atrasada! — ouvi a voz daquela líder de torcida que tinha me zoado mais cedo. Eu me recusava a ser um alvo de alguém assim. Me virei para ela, que ainda estava usando o uniforme, segurando um copo. — Conseguiu achar o caminho de casa, Chapeuzinho?
— Você não tem nada mais útil pra fazer? — perguntei. — Precisa ocupar seu tempo tentando tirar sarro dos outros? Que vida miserável.
— Caloura, você precisa entender que existe uma hierarquia aqui. Os veteranos zoam os novatos, essa é a lei da selva.
— Que nojo — disse Maya.
— Aqui na Drim precisa andar em bando — continuou ela. — Se você não se enturmar, vai acabar sendo engolida.
— Tô morrendo de medo — debochei.
— Tudo bem por aqui, gente? — perguntou Sunny, se aproximando pelo lado oposto a Maya. — Não tem nenhuma raposinha incomodando vocês? — a última frase foi pronunciada de forma irônica para a outra. — Ah, Valentina, aí está você! Seguindo com a programação normal, eu imagino.
— Relaxa, Sunny — disse Valentina, — eu só tô incentivando as calouras a fazerem novas amizades. Não é tão difícil socializar. Se inscreveram em algum esporte pelo menos? Ou vão deixar esses músculos se atrofiarem?
— Na verdade, eu vou entrar no time de vôlei dos Dragões — disse Maya.
Eu a encarei. Ela não tinha me contado isso, então supus que tinha acabado de tomar a decisão.
— Boa escolha — disse Valentina, e olhou para mim. — E a atrasada?
— Ela já faz parte de um time — Sunny respondeu no meu lugar. — Mas não sabe disso ainda. Agora, se nos der licença, temos coisas mais legais pra fazer.
Sunny nos empurrou gentilmente na direção oposta a Valentina.
— Que história é essa de time? — perguntei a Sunny.
— Resolvemos depois. Precisam entender que Valentina não tá preocupada com a socialização ou com a saúde de vocês. Ela só quer que vocês escolham um lado, quero dizer, um lado entre as atléticas.
— Eu já escolhi a Dragões faz tempo — eu disse.
— Eu percebi, e é por isso que resgatei vocês. Não podem ser intimidados por ela.
— Ela disse que temos que andar em bando — disse Maya. — Eu entendi que precisamos nos posicionar, então falei sobre o volêi.
— E você vai mesmo entrar? — perguntou Sunny, animada.
— O treinador Alfa disse que seria bom para treinar minha mira.
— Ótimo, eu vou falar com a capitã do time feminino. Aqui, venham pegar as jaquetas.
Sunny nos levou para perto de um banco onde estava montado um certo acampamento dos Dragões. Ela tirou de uma sacola duas jaquetas empacotadas
— Se vão mesmo ficar com os Dragões, mesmo que seja só para torcer e amigar, usem isso. As Raposas não vão mais incomodar vocês.
— Ok — eu disse, aceitando a jaqueta. Era branca e roxa, no estilo colegial, que eu adorava. — Gostei da jaqueta.
— Se preparem, daqui a pouco vamos ter apresentações dos times de cheerleading. É tipo uma batalha, mas não tem vencedor. É só conquista de público.
— Quero muito ver isso — confessei.
Sunny nos levou para um ponto próximo ao time, que estava todo uniformizado. Estávamos em uma área onde se reuniam várias pessoas que não pareciam ser do cheerleading, mas estavam vestidos para torcer. Alguns com camisetas e jackets comuns, mas também havia alguns atletas de outros times, como vôlei e basquete.
Do outro lado do pátio, dava para ver a mancha vermelha das Raposas reunidas. Fiquei observando e notei que Valentina estava agarrada com um garoto loiro platinado de cabelo arrepiado.
— A Valentina tem namorado? — perguntei.
Sunny olhou para onde eu estava olhando.
— Na verdade, é noivo dela. Enrique Ochre.
— Noivo? — perguntou Maya, chocada.
— É. Os dois são de Dominus, e, você sabe… casamentos arranjados são comuns nas famílias mais altas.
Ao lado do casal que ainda estava se pagando, tinha um menino soulense nos encarando com um olhar frio.
— E aquele outro garoto? — perguntei. — Ele parece determinado a destruir vocês.
— Ah, aquele idiota é o meu irmão, Baekhye — contou Sunny. — Ele era da Dragões, mas não durou muito depois que eu entrei. Ele quer, de todo jeito, estar contra mim.
— Que péssimo — disse Maya. — Ele deveria querer ficar perto da família.
Olhei para Maya. Senti algo estranho no jeito como ela falou, como se ela tivesse passado por algo delicado em sua própria família, mas achei melhor não perguntar.
— Meninas, eu já volto. Preciso checar os holofotes. Os Dragões não se apresentam sem um bom show de luzes!
Logo depois de dizer isso, Sunny sumiu no meio da multidão. Eu e Maya ficamos esperando com a plateia. Nossa amiga não demorou muito para voltar. Um rapaz de camiseta branca passou em ambos os times, provavelmente para avisar que iria começar.
Pouco depois, soltaram a música. Os dois times apresentaram suas rotinas ao mesmo tempo, com a mesma música, mas arranjos diferentes. Virou praticamente uma batalha. Quem participou a fundo foram os veteranos, já que os calouros sequer tinham treinado, mas alguns estavam dando o nome nos improvisos de acrobacias nas laterais.
Eu não conseguia ver os holofotes, mas as luzes projetadas por eles estavam concentradas nos dragões. Havia luzes coloridas fixas, em tons de roxo e azul, e alguns focos brancos em movimento, que traziam ainda mais dinamismo para a apresentação.
— Eu conheci ele na recepção — disse Maya, apontando para um dos garotos que eu falei. Era um soulense de cabelo levemente arroxeado.
Pouco depois, um garoto ruivo se aproximou dela e começaram a conversar.
— Ele tá indo bem pro primeiro dia, né? — falou ele.
— É. Você não quis entrar?
— Até quis, mas só tinha uma vaga para menino, então deixei pra ele.
— Isso que é amigo.
— E você, não se interessou pelo cheer?
— Longe de mim. Da Duda também. Ah, Duda, esse é o Taesung. Tae, essa é a Duda, minha roommate.
Apertamos a mão para nos cumprimentarmos.
— Espero que você consiga entrar algum dia.
Depois da apresentação, a festa continuou por mais um tempo, mas não quis ficar muito. Teria aula no dia seguinte. Não tinha nada a ver com querer jogar uma ou quatro partidas de Woods Gods antes de dormir.
DUDA
20h25
terça, segundo dia de aula
Saí da aula e fui direto para o grande refeitório da Drim. Os horários eram bem amplos para que todos os alunos pudessem comer, e cada refeição tinha ao menos três opções variadas. Realmente, era outro mundo. No ensino médio, às vezes só tinha sopa.
Talvez fosse coisa do interior. Eu tinha nascido e crescido em Riveiras, uma cidade próxima a Dominus. Apesar disso, perante a sociedade da Drim, eu era de Dominus.
A Drim era uma universidade grande e muito conceitual. O campus de Soul, onde eu estava, era o principal. Acontece que não é qualquer um que pode entrar. Você precisa ser matricular, e eles vão avaliar seu desempenho escolar anterior, sua família e sua cidade. Eu sei, é ridículo, mas o campus Soul só aceita alunos de Soul, Dominus e Mirai, salvas raras exceções. Por isso, meus pais decidiram me matricular com o endereço dos meus tios que moravam em Dominus.
Eu sei. Eu tinha conseguido minha vaga com uma mentira, e isso era errado. Em minha defesa, a decisão não foi minha, foi da minha família. Claro que eu sempre quis estudar na Drim, como qualquer jovem jesveriano, mas preferia ter feito isso do jeito certo, e não ter passado... mas como eu estava amando estar na Drim, tentava não pensar sobre isso.
Voltando à refeição, eu escolhi a opção 2: salada de lentilha e carne de porco. Peguei suco de laranja e fui procurar um lugar para comer.
Foi mais fácil do que pensei. Quando meus olhos avistaram a mancha branca e roxa no meio do refeitório, Sunny já estava acenando para mim.
Sorri e fui até ela. Sunny era minha única pessoa de confiança até o momento, além de Maya, minha roommate.
— E aí, minha caloura favorita? — perguntou ela animadamente. Logo depois, olhou para seus companheiros do cheerleading, dentre os quais havia alguns rostinhos decepcionados. — Quis dizer, minha caloura favorita que não é do time!
Eles relaxaram e riram um pouco.
— Pode sentar com a gente! — disse ela, já sentando e me induzindo a fazer o mesmo. — Mesmo sem ser do time, você é quase uma de nós, não é? Só falta estar mesmo em um time da Dragões.
— Já disse que não tem a menor chance disso acontecer — eu disse, começando a arrumar minha primeira garfada. — Eu não sou uma pessoa dos esportes. Quer dizer, eu luto taekwondo, mas eu vi que vocês não têm time disso.
— O conselho não deixa. As artes marciais não são consideradas um esporte atlético; são disciplinas da grade de alguns dos cursos. Por isso, são exclusividade da universidade em si, sem fins competitivos.
— É, o treinador Alfa nos disse — expliquei.
— Esteve com o treinador Alfa — perguntou o rapaz imediatamente ao lado de Sunny.
Ele era bem forte, soulense de cabelo preto e liso, e tinha uma tatuagem de lobo no pescoço. Eu o tinha visto no dia da recepção: não parecia ser o mais simpático do grupo. Apesar disso, o uniforme do cheerleading o deixava com aspecto mais fofo do que ele queria.
— Estive — contei. — Quando fui atrás das aulas de taekwondo, mas ele explicou essa coisa de ser só para alunos, e que eu posso tentar em um projeto de extensão.
— Era o que eu ia dizer — revelou ele. — Eu te aviso quando tiver algum na sua área.
— O Jae cursa Arte de Combate aqui — explicou Sunny. — A ideia da extensão é ótima, mas não era bem isso que eu queria te sugerir. Eu notei que, ontem, você estava usando uma camiseta do Woods Gods.
Minhas sobrancelhas se ergueram. Woods Gods era, basicamente, o melhor jogo MOBA do mundo, na minha perspectiva. Era o único jogo que eu jogava na vida, mas ele fazia meus olhos brilharem e meu tempo livre escorrer facilmente entre meus dedos.
— É, talvez eu jogue um pouco… mas o que tem isso?
— Você deve ter visto, nós temos um time de e-sports; e WG é o jogo principal! Você devia tentar.
— Eu não acho uma boa ideia — eu disse, na lata. Senti Sunny recuar um pouquinho com a negação imediata, mas tentei me justificar, sem amolecer. — Eu não sou uma pessoa muito competitiva. Eu jogo por diversão! E, claro, eu não me sinto confortável em entrar em um time que joga outras coisas, porque eu literalmente só jogo isso.
Sunny fez uma careta irônica do tipo “é sério?”.
— Não tem problema nenhum! O time é plural porque existem vários tipos de jogadores. Muitos deles são especializados em apenas um tipo de jogo. Só precisa jogar em várias posições.
— Ta aí, você nem sabe se eu sou boa e quer me colocar no time!
— Aí que você se engana. É claro que eu corri atrás e descobri seu nickname, descolei o seu histórico completo e já sei que você tem um ótimo perfil
— Peraí, você tá me stalkeando? — perguntei, um pouco brava, mas só um pouco.
— O Jae me ajudou — disse ela, com naturalidade. — Mas é como você mesma disse, eu tinha que saber se você era boa antes de te convidar. Pra que quando eu te convidasse, você não visse com esse papo de “não sirvo pra isso”.
— Tá, mas mesmo assim, essa ideia não me interessa.
— Você nem sabe como funciona! Por que acha que não vai ser legal?
Revirei os olhos. Como ela era insistente!
— Eu não quero a tensão de competir. Eu jogo por diversão, pra passar o tempo, e é só isso.
— Eu não quero ficar refutando todos os seus argumentos, eu entendo se você quiser mas… isso realmente não é um problema. Você não vai entrar direto numa competição, vai treinar primeiro. Pode só jogar com a galera até pegar confiança.
Ela estalou a língua e deu uma piscada longa, como se tivesse acabado de tomar uma decisão.
— Vamos fazer assim: eu te apresento ao capitão do time, você passa um dia jogando com eles e depois me diz o que achou. Se não quiser entrar, eu não vou forçar a barra, mas… eu acho que você está evitando entrar por motivos bobos.
Acho que eu poderia surtar se uma pessoa qualquer estivesse falando comigo daquele jeito; mas não a Sunny. Ela deu um sorrisinho confiante com o rosto de lado, quase como uma princesa da Disney. Ela não estava me chamando de boba ou me ofendendo: ela só queria me proporcionar algum tipo de experiência atlética universitária, e dava pra ver que aquilo era muito importante pra ela.
Aliás, ela tinha lá sua razão… por que eu estava sendo tão irredutível? Woods Gods era minha vida, eu deveria estar ansiosa para, ao menos, saber como era.
Decidi aceitar, mas nada de moleza. Eu não gostava nada de não ser dona das minhas próprias decisões, detestava me dobrar para a vontade dos outros. Então, se eu estava fazendo aquilo, era porque Sunny tinha uma proposta minimamente atrativa.
— Então, negócio fechado. Um treino e eu decido se entro ou não no time.
Ela ficou toda sorridente e bateu pequenas palminhas.
— Isso aí. Depois do almoço eu te levo lá, então.
Eu sorri de volta e, finalmente, comecei a comer.
Depois de almoçarmos e levarmos a louça, Sunny se despediu do time e começou a me guiar para a tal sala, enquanto panfletava um pouco mais o time.
— Eu acho que você vai gostar! Deve estar acostumada a jogar sem contato com seu squad, ou em contato apenas em chamada… mas ter com quem conversar sobre isso, traçar estratégias, respirar o jogo… tudo isso é maneiríssimo. Ah, e eu nem falei nas máquinas! Claro que a sala é extremamente equipada para um time profissional.
Sunny parou de frente para uma porta de correr, que era toda envelopada com partes em preto, desenhos de alguns personagens famosos de jogos (incluindo WG) e também uma parte com a logo da Dragões e, abaixo, escrito “e-sports”. Ela empurrou a porta, revelando a sala que era toda preta e sem janelas, iluminada apenas por fitas de luz branca e colorida.
Na parte central da sala, havia duas fileiras de poltronas individuais, uma de frente para a outra. As poltronas eram bem acolchoadas e tinham headers acoplados. Algumas das estações estavam ocupadas com jogadores. Nesse caso, à frente deles era projetada uma tela plana com a visão deles de jogo.
No espaço ao redor das estações, havia algumas cadeiras extras e duas lousas brancas grandes com anotações. Do lado direito da sala, o acesso (com dois metros de largura) para uma sala anexa que funcionava como lounge, com poltrona, balcão, mesa de centro, frigobar e televisão.
— Nossa — foi a única coisa que saiu da minha boca.
— É, eu te disse — resmungou Sunny, entrando na sala. — Capitão, eu trouxe uma recruta.
Dentre todos os meninos que estavam jogando do lado esquerdo, havia um de pé entre as estações, com um earset (acessório comunicativo de ouvido único), observando atentamente. Quando Sunny se pronunciou, ele olhou para nós. Nesse momento, Sunny se concentrou em fechar a porta, o que fez a atenção dele estar toda em mim. Não foi exatamente confortável.
— Oi — eu disse, um pouco seca, mas dei um sorriso em seguida.
Ele deu um toque no earset.
— Ooi — ele disse assim mesmo, estendido, enquanto deixava o jogo de lado e vinha em nossa direção. Era um garoto branco com cabelo preto curto; tinha muita cara de dominense. Estava usando a camiseta do time e calça jeans. — Você deve ser a Duda.
Olhei para Sunny brevemente.
— Já falou de mim, é?
— É — disse ela, se aproximando, — mas não sobre nossa última conversa. Ela vai fazer um teste hoje, treinando aqui pra ver o que acha. É uma experiência nova pra ela.
— Eu entendo. Espero que você goste, e fique — ele deu um sorriso soprado, levantando um pouco os ombros. Me pareceu um desejo genuíno.
— Duda, esse é o Guilherme Vilela, capitão do time.
— É um prazer conhecê-lo — eu disse.
— Digo o mesmo! Vamos, vamos conversar um pouco no lounge.
Ele seguiu para a área aberta, certamente para não desconcentrar os jogadores. Quando ele virou de costas, notei o nome dele na parte de trás da camiseta, que parecia muito com uma de futebol, mas mais estilosa. Era preta com detalhes sutis em roxo.
— Então, Duda, nós temos uma estrutura bem equipada para abraçar todos os nossos jogadores. Todos os headers são do mesmo calibre utilizado em campeonatos oficiais, assim como as poltronas. Elas são ajustáveis em inclinação e altura e também contam com telas auxiliares, porta-copos e uma pequena mesa retrátil. Temos algumas escalas com os horários fixos de treinamento, respeitando divisões e posicionamentos. Ah, mais importante de tudo…
— Os troféus? — perguntei, implicando com o fato de não ter nenhum troféu exposto na sala.
Guilherme hesitou um pouco, parado na mesma posição, mas sem perder a animação em seu rosto. Em seguida, continuou a falar.
— Não, na verdade é o frigobar com energético à vontade. Os troféus ficam na sala da diretoria da atlética.
— Ah, bom — eu disse.
— Depois eu te levo pra dar uma olhada — garantiu Sunny, em voz baixa, toda empolgada.
— Continuando, nossa escala sempre deixa algumas estações vazias, para quem quiser jogar fora do horário. Então, está pronta para começar?
— Claro — eu disse, com calma.
Ele foi nos guiando de volta para a sala principal. Ele escolheu uma estação vazia, do lado oposto ao que estava antes, onde havia só dois jogadores. Com isso, ele conseguiu sentar na estação ao lado de onde havia me indicado para ficar. Peguei o header.
— Bom, eu vou deixar vocês se divertindo aí… — disse Sunny, indo para a porta sem tirar os olhos de nós. Meu olhar se voltou para ela, desesperado por um momento, mas ela fez joinha com as duas mãos, me passando confiança.
— Valeu, Sun — disse Guilherme. — Vamos ficar bem.
Colocamos os headers.
Logo, eu estava com meu avatar. Era uma versão 3D muito parecida comigo, mas com cabelo solto e armadura. Me vi no centro do hall, uma espécie de menu de um header. É uma sala circular que pode ter qualquer wallpaper, ou seja, decoração. Aquele hall era cercado por uma cidade tecnológica destruída à noite, com letreiros de neon caídos exibindo a logo da atlética em tons roxos.
— Qual é a sua trilha? — ouvi a voz de Guilherme do meu lado.
— Consigo ir em qualquer uma, mas… eu prefiro atirador. A não ser que esteja jogando com a Iara, e eu iria na trilha central.
— Claro.
À minha frente, dentro do espaço circular, havia os ícones dos aplicativos do header. As opções eram apenas os jogos do time, sendo: Woods Gods, 4Tonight, Say Yes e Cough Dirty. Selecionei o ícone do meu jogo.
— Eu vou entrar com você de suporte.
— Ok — eu disse, um pouco confusa. Achei que ele iria só me observar, mas a ideia dele estar no jogo e não no meu cangote me agradava mais.
Entrei na tela de Woods Gods. O hall era cercado por uma floresta meio transparente. Dessa vez, à minha frente havia uma tela inclinada, como se fosse um pedestal, com as opções do jogo. Graças ao reconhecimento ocular, eu já estava logada na minha conta. Selecionei a opção de criar uma partida player vs. player do mapa clássico, Glory Forest. Selecionei minha posição de jogo e criei a sala.
— Você vai jogar com quem? — perguntou ele.
— Maeve.
— Legal, ela parece com você.
Fiz uma careta.
— Em que sentido?
— Aparência mesmo. O cabelo, principalmente. Eu vou com a Huli Jing.
— A deusa raposa. Ela parece com a Iara.
— Mas joga na trilha leste — completou ele. — E a Iara na trilha central.
— Eu conheço o jogo, não precisa ficar me explicando.
Ele riu.
— Eu só tô comentando. Aliás, só pra lembrar, isso aqui não é um teste. Quer dizer, eu não tô te testando. Você que tá testando se aguenta ficar aqui com esses marmanjos.
— Eu aguento qualquer coisa — eu disse, com meio sorriso. — A questão é seu eu vou gostar ou não de ficar aqui.
A sala mudou, criando cinco pedestais no chão, à frente dos quais havia o ícone de cada posição do jogo. Eu estava no pedestal de atirador. Logo depois, Guilherme apareceu direto no pedestal de suporte. O avatar dele estava usando uma roupa branca e dourada, parecida com um príncipe europeu, e com orelhas de elfo. Não consegui não dar risada disso.
— Qual é a graça?
— Roupa fofa, a sua.
— Ela ainda é fofa assim? — perguntou ele, e a roupa se incendiou em alguns pontos. Só então, notei que alguns detalhes dourados tinham detalhes de chamas.
— Efeito legal.
— Não é só um efeito.
Quando ele disse isso, senti um calor perto de mim, o calor característico do fogo.
— Você é um dominador de fogo — concluí. — Maneiro.
— Qual é o seu poder?
— Eu crio campos de força.
— Por isso você vive tanto na defensiva.
— Nossa, essa foi péssima — eu disse, rindo da má qualidade da piada, e ouvi um risinho do outro lado.
Aos poucos, outros avatares apareceram nas três demais posições. Avançamos para as configurações.
Na tela de pedestal, havia os jogadores disponíveis. Selecionei a Maeve e fui para a escolha das skins, onde peguei a minha favorita: Caminho do Rio. Depois, mais algumas configurações adicionais e encerrei minha seleção.
Logo, minha aparência mudou para a Maeve Caminho do Rio. Parecia um pouco com a Maeve original, com vestes célticas, mas tinha mais tons de azul e verde, além de espirais de água em movimento em volta dos braços e pernas. O cabelo cacheado e ruivo era agora um rabo de cavalo liso e colorido em uma curva sinuosa, imitando o rio.
Esperei os outros jogadores. Guilherme foi de príncipe a Huli Jing Fofura Suprema. Essa skin tinha mais pelúcias na roupa branca, com detalhes em cores fofas e orelhas de gato.
No hall de carregamento, nossos pedestais ficaram de frente para os pedestais inimigos, onde vimos os personagens que iríamos enfrentar.
Iniciamos a partida, aparecendo na base com nossos companheiros. A imersão no jogo era em primeira pessoa, e muito realista. Eu e Guilherme compramos itens e fomos juntos para a rota leste.
Pouco mais tarde, o combate começou. Os comandos eram todos mentais, mas limitados. Podíamos andar livremente, mas os golpes eram específicos, pré-programados. Nós apenas os selecionávamos.
Levamos a partida enquanto compartilhávamos estratégias. Vez ou outra, um de nós sugeria uma movimentação específica. No geral, nos demos bem como dupla, dividindo o comando de forma equilibrada.
Guilherme era mais… eu não diria inteligente, mas ele estudava o jogo, então conhecia mais a fundo. Mesmo com esse arcabouço, ele não era mandão. Dava espaço para minhas decisões. Além disso, ele explicava bem o que queria ou precisava.
Nossa dupla nos levou à vitória pela rota leste. A batalha final foi uma bagunça, mas, ainda assim, conseguimos nos ajudar.
— É, eu gostei dessa partida — disse ele, enquanto a palavra “Vitória” aparecia nas telas. — O que você achou?
— Legalzinha.
Voltamos para a sala de partida.
— Ok. Legalzinha mais pra interessante ou legalzinha mais pra “meio mé, mas vou dizer isso pra não deixar ele chateado”?
— Eu não tenho motivos para não te deixar chateado.
— Bom ponto. Estou ansioso para ver como seremos contra.
— Vamos agora?
— Agora? Não era o plano, mas… ok, vamos agora.
Guilherme configurou a sala para que ele entrasse no outro lado. A posição dele mudou para fora do meu hall, mas eu conseguia vê-lo translúcido, de frente para mim.
— Vamos na trilha do meio. Você de Iara e eu de Huli Jing.
— Huli Jing na trilha do meio?
— Não é tão comum, mas é uma possibilidade. Como eu disse, elas são bem parecidas.
— Ok. Você quem sabe.
Selecionei a trilha do meio e abri a sala. Outros avatares entraram nas demais posições. Seguimos para a escolha de personagem. Escolhi a skin Techno Iara. Ganhei cauda de sereia de material translúcido, mostrando os fios internos, e o restante do corpo também era cheio de mecanismos. Em vez de ser sustentada por um feixe de água como na skin clássica, flutuava sobre um projetor circular.
Após a nossa seleção, ficamos de frente para o time inimigo. Guilherme escolheu a skin Huli Jing Clã das Sombras. A raposa ficou o exato oposto do jogo anterior, com roupas em tom preto e roxo, pele acinzentada e olhos sinistros.
— Ok. Skin fofa para aliado e skin sombria para inimigo.
— Não tá com medo disso né? A skin Techno também não é exatamente uma doçura.
— Sonhe com o dia em que eu vou ter medo.
A partida começou. Deslizei para a loja para comprar os itens iniciais e segui o caminho do meio. Fiquei atrás da torre esperando o início. Os minions passaram por mim e começaram a lutar com os minions inimigos. Então, avancei com cautela.
Guilherme surgiu das sombras, começamos ambos jogando habilidades de lentidão, relacionadas aos poderes de encantamento. Depois, seguimos com uma batalha mágica. Ficamos até nossas vidas baixarem bastante e recuamos para a base.
Comprei mais itens e voltei para a minha trilha. Entramos no segundo embate. Dessa vez, ele acabou me matando quando comecei a recuar.
— Ah, você vai ver só! — eu disse, com uma risada maléfica. Rancorosa, eu? Imagina!
Aproveitei a morte para comprar mais itens e voltei para a base. Com mais concentração e raiva acumulada, usei todo o meu potencial para focar em Guilherme. Ataquei recuada, usando os ataques básicos e dispensei só uma habilidade de iniciação. Mais para a frente, com a vida dele na metade, usei um combo de três habilidades e baixei a vida dele quase a zero. Ele começou a recuar, mas tive tempo de terminar o serviço com ataques básicos.
Com isso, foquei nos minions e levei os meus para atacar a torre. Conseguimos um dano considerável antes que ele voltasse.
Nossa batalha seguiu acirrada, mas o meu time acabou ganhando pela trilha do leste (como geralmente acontece).
— É, impressionante! — disse Guilherme, enquanto a tela de vitória aparecia pra mim. — Acho que eu não quero mesmo ser seu inimigo. Me aceitaria de volta no seu time?
— Com você pedindo educadamente, não tenho como recusar. Você também não é de se jogar fora.
Ele deu uma risadinha e tirou o header.
— Vou pegar um energético. Quer um?
— Aceito.
Fiquei esperando ele voltar enquanto encarava o avatar dele dentro do hall. Comecei a pensar que estar naquele time não seria tão ruim.
Comments