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EP.3. DUALIDADE

MAYA

13h56

terça, segundo dia de aula


Depois do almoço, passei algum tempo lendo no quarto. Depois, escolhi uma roupa confortável para jardinar. Uma bermuda bege já com manchas de terra que não saíram nas lavagens, meio endurecida pelo desgaste. Uma blusa da mesma cor, com babados nas mangas. Botinhas marrons com sola grossa. Por fim, prendi metade do cabelo no alto para não ficar no meu rosto.

Pronta, fui para o local onde funcionava o clube de jardinagem. Para alguém com o meu gosto por plantas, era um lugar encantador. No meio de uma área gramada com algumas coisas plantadas em vasos e direto na terra, havia uma estufa, onde entrei. Uma casa de vidro com armação de ferro com várias bancadas cheias de plantas diversas, organizadas por categorias. Também havia armários com ferramentas e insumos. Fui até lá e providenciei um avental e luvas, antes de começar a andar por aí.

Minha primeira missão pessoal era explorar o lugar e entender como organizavam. Não era tão difícil, já que tudo era sinalizado com placas manuscritas em giz.

Encontrei uma flor que estava quase desabrochando e um sorriso apareceu naturalmente. Enviei um pouco de mana e, sutilmente, a flor se abriu. 

— Olá! — ouvi uma voz conhecida atrás de mim, e me virei para ver. Meu encantamento se substituiu por tédio quando notei quem era. Felipe Rider, o recrutador dos calouros. Seu sorriso parecia sincero, mas eu não consegui me ater a ele. Estava usando um macacão de jardineiro bege e blusa branca, além das luvas e botas.

— Olá — respondi, secamente, e me voltei para as plantas. 

— Seja bem-vinda à estufa — disse ele, sem se afetar. — É a primeira vez que vem aqui, né? Eu posso te mostrar como…

— Já vi tudo, obrigada — eu o interrompi.

— Ah — ele disse, um pouco surpreso. — Está bem, então… Se você quiser plantar alguma coisa…

— Eu estou bem sozinha — eu voltei a olhar para ele. — Uma caipira como eu sabe muito bem cuidar das plantas, então você não precisa fingir que se importa. 

— Eu só queria ser legal — disse ele, em voz baixa.

Ele começou a mexer em suas próprias coisas.

— Legal como ontem? — perguntei. — Eu não preciso desse tipo de pessoa. Achei que estava falando sério quando disse que não era o único nesse clube.

O som do trabalho dele parou. Curiosa, olhei para ele, e notei que me observava com uma expressão estranha e confusa.

— O que foi? — perguntei.

— Ontem? — ele ergueu as sobrancelhas. Eu estava pronta para dar mais uma resposta afiada, porque aquele comportamento dele se fazendo de idiota estava começando a me deixar verdadeiramente irritada. No entanto, ele riu levemente, voltando a atenção para as plantas, o que me deixou encucada demais para me pronunciar. — Ontem. Entendi.

Revirei os olhos, voltando para as plantas que estava cuidando com magia.

— Não entendi qual é a graça — murmurei.

— A graça — disse ele, com tom de obviedade — é que eu não interagi com ninguém ontem aqui no campus.

Eu o encarei. Realmente, o jeito dele falar era completamente diferente do dia anterior, mas a aparência era exatamente a mesma.

— Então o quê? Você tem um irmão gêmeo?

— Pior — ele pareceu um pouco chateado, enquanto andava para um canto onde havia um objeto plano coberto com uma lona, como se fosse um quadro. Ele afastou o pano, revelando um espelho convexo.

— Vermelho, você conhece essa moça?

Ele virou o espelho um pouco na minha direção. Enquanto o rapaz olhava para o espelho, o reflexo me encarou com olhos vermelhos. Assim que me avistou, ele abriu um sorriso malicioso. 

— Maya Fujita!

Felipe virou o espelho um pouco para si.

— Você foi rude com ela — revelou ele. — E agora ela está sendo rude comigo.

O reflexo revirou os olhos.

— Eu fui eu mesmo. Pare de reclamar. Aliás, não foi nada demais, ela devia ser menos rancorosa.

— Qual é, cara, você precisa se comportar! Tava tão bem no fim do semestre, por isso eu deixei você ficar no comando no primeiro dia. 

— Até parece que isso muda alguma coisa. Eu fico no comando quando eu quiser, e você sabe disso. Não precisa fingir que você manda no corpo.

— Eu sou o dono deste corpo.

— Não é, não.

— Eu cheguei primeiro, eu sou o dono.

— Só que eu sou mais poderoso. Tente o quanto quiser, você não decide nada.

Felipe puxou o pano e cobriu o espelho, um pouco frustrado. Depois, se voltou para mim com a mesma simpatia de antes.

— Ai, ai, esses bodymates… — ele deu uma risada sem graça.

— Esses o quê?

— Bodymates. Sabe? Igual roommates, só que com corpo… Desculpa, eu costumo usar essa expressão com quem já conhece, mas…

— Não, não, a essa altura eu devia ter entendido. Então ele é…

— Uma segunda personalidade. Dividimos este corpo. Então, agora que você sabe disso, vou tentar mais uma vez… Você quer alguma ajuda?

Ele coçou a cabeça, parecendo um pouco encabulado. Isso me fez rir bem levemente.

— Claro. Queria plantar alguma coisa, e não quero mexer na sua organização. Mas, antes, tem alguma forma fácil de distinguir você e seu… bodymate?

— Além do comportamento completamente oposto? Tem sim. Ele tem olhos vermelhos, e eu tenho olhos verdes.

— Ah, ele estava usando óculos escuros ontem…

— É uma mania dele. Bom, eu não uso óculos escuros, então, se vir, já sabe quem tá on. 

Assenti.

— Então, vamos plantar alguma coisa — disse ele, um pouco mais animado, e foi para o armário, pegar as ferramentas. — Tem ideia do que quer plantar?

— O que você estiver precisando.

— Sei. Que tal… cenouras?

Olhei para ele, talvez com um olhar um tanto ameaçador. Nenhum miraiano aguenta plantar cenouras, já que isso é tudo que sabemos fazer no começo. Ele riu de mim, com uma gargalhada muito espontânea.

— É brincadeira! O que acha de campânulas?

Eu sorri. Até que ele tinha um bom senso de humor.

— Campânulas é uma ótima ideia — admiti.

Ele prendeu o sorriso. Pegou alguns itens no armário e foi para uma área mais vazia das bancadas.

— Pode vir.

Eu segui ele até aquele ponto. A bancada parecia vazia, mas alguns vasos vazios com tamanhos diferentes. Na parte de baixo da bancada, notei sacos de terra. Felipe colocou sobre a bancada as ferramentas de jardinagem.

— É aqui que a gente cria novos vasos. Eu sei que você já sabe fazer isso, então… Vou só ser seu assistente.

— Tudo bem, mas se tiver alguma dica, eu aceito. Eu não sou tão ignorante assim.

Nós dois rimos um pouco, e eu abaixei para pegar um pouco de terra. Desatei o nó e peguei a pá trazida por ele, mais um vaso pequeno. Enchi uma pá e fui preenchendo o vaso.

— Essa terra é meio seca — explicou Felipe. — Vamos dar uma misturada nela.

— Pensei o mesmo — eu disse, voltando para a bancada. — O que você tem para melhorar?

— Tenho alguns adubos e poções — disse ele, indo buscar.

Nesse meio tempo, um grupo de alunos chegou à estufa, todos com olhos verdes.

— Oi, pessoal! — cumprimentou Felipe. — Grande tarde.

— Fala, Felipe! Que bom te ver aqui em vez daquele pé-no-saco — brincou um deles.

Felipe voltou para perto de mim com uma cesta de poções, enquanto os demais alunos ficavam à vontade em suas atividades.

— Eu tenho essas opções — mostrou ele, e começou a explicar cada uma, fazendo algumas indicações.

Escolhi três dos frascos. Adicionamos gotas de cada um aos poucos, misturando entre cada um, colocando a mão na massa. Depois de deixar a terra bem fofinha, plantamos a semente. Por fim, invoquei uma nuvem para regar a terra.

— E é isso! — disse ele. 

— Vou adicionar um pouco de magia pra ajudar a crescer mais rápido.

— Ótimo — disse ele, enquanto eu invocava os flocos de luz. — Você é realmente boa nisso.

— Valeu — eu disse, sorrindo. — Você precisa de mais alguma ajuda?

— Ah, eu tô precisando podar as nossas roseiras. Pode vir comigo, se quiser.

— Claro, eu vou sim.

Trocamos as luvas, já que aquelas já estavam imundas, e Felipe pegou as tesouras de jardinagem. Fomos para o setor das roseiras. Eu também já conhecia a técnica para podar a roseira, então fomos fazendo isso juntos.

Depois de algum tempo, ele se pronunciou.

— Ele faz isso comigo — disse ele. — Fica me podando.

— O seu bodymate? — perguntei. Logo, olhei para ele para ver se os olhos ainda estavam verdes, e estavam.

— É — contou ele. — É uma experiência terrível. O pior de tudo é que esse é o nosso poder. As pessoas normais têm poderes elementares, poderes mentais, poderes físicos… E eu, não. Meu poder é dividir o corpo com um cara que se acha melhor do que eu.

— Deve ser péssimo — murmurei, sem saber o que dizer. — Eu nem imagino como é.

Ficamos em silêncio por alguns segundos.

— E quando você não está no comando, o que acontece com você?

Ele inspirou fundo, como se aquele assunto não o deixasse confortável.

— Eu fico no escuro — disse ele, em voz baixa. — Quando tem algum reflexo, uma janela aparece pra mim, e eu consigo me conectar com o mundo. Como ele fez há pouco.

— E como é o controle? Me desculpa, eu nem sei se eu deveria estar perguntando isso, a gente acabou de se conhecer…

— Não, não tem problema. É bom ter alguém com quem contar, sabe? 

Assenti.

— Eu sinto muito — disse ele. — Talvez tenha dado para perceber que eu não gostei nada do que ele fez ontem, mas… Só para deixar claro, eu queria me desculpar.

— Não tem problema. Eu também preciso me desculpar por ter sido rude com você mais cedo. Você não merecia isso.

Ele se permitiu rir um pouco, embora ainda estivesse triste.

— Eu tô acostumado. Acontece com mais frequência do que você possa imaginar. Tirando os novatos, aqui na estufa costuma ser seguro. Nossos colegas já sabem como funciona.

Ele deu um suspiro.

— Céus, ele é muito chorão — disse ele.

Eu o encarei, mesmo já dando para perceber: os olhos dele estavam vermelhos.

— Você deveria se colocar no lugar dele.

— Me colocar no lugar dele? — Vermelho ficou subitamente irritado, me encarando com uma expressão raivosa. Ele começou a se inclinar na minha direção, ainda com a tesoura na mão. — Isso é tudo o que eu faço na minha vida. Você não tem ideia de como é. Ele reclama, mas quem passa a maior parte do tempo no escuro sou eu.

— Você não disse que você é o mais poderoso? — perguntei, desafiando-o. — Que você é quem manda? Por que você fica no escuro?

Ele rosnou, como se tivesse algo preso em sua garganta. 

— Porque ele tem um domínio programado. Ele não faz por merecer o despertar, ele simplesmente fica vivendo… e eu tenho que fazer um esforço tremendo pra despertar.

— Olha, eu não sou especialista, mas, desse jeito… parece que ele é o dono do corpo.

Vermelho jogou a tesoura de jardinagem no chão.

— Não repita isso. Você não quer me ver irritado. Por acaso está tentando ser minha inimiga? Eu não recomendo — sua última frase teve um tom ainda mais sombrio que a das outras.

Eu não sou de me amedrontar fácil. Não deixei transparecer, mas, pela primeira vez, eu tive medo daquele cara.

— Deixa ela em paz, Vermelho — disse um dos alunos. Eu e Vermelho olhamos na direção dele, que era o único que ainda cuidava das tarefas; os outros tinham parado tudo para se atentar a nós. 

— Cuida da sua vida — advertiu Vermelho. 

O rapaz, um mago, olhou para Vermelho, parecendo cansado daquele comportamento. Ele descobriu o espelho, que estava próximo dele. No reflexo, eu vi Felipe, o garoto de olhos verdes, um pouco assustado.

— Por que tá fazendo isso? — perguntou ele, com a respiração acelerada. — Qual é a necessidade?

Vermelho franziu os lábios.

— Por que eu sou assim? Porque você é meu fardo. Estúpido.

Vermelho tremeu um pouco, piscando no processo. Os olhos dele ficaram verdes e ele expirou. Felipe se apoiou na bancada, se deixando curvar um pouco, como se estivesse cansado. No reflexo, Vermelho ainda estava com raiva, e virou de costas. O mago o cobriu.

Felipe se levantou subitamente, virando na minha direção. Eu tomei um pequeno susto, mas ainda era ele, ainda transtornado.

— Me desculpa, você não devia ter visto isso.

Ele me deu as costas e saiu correndo da estufa.

— Alguém vai atrás dele? — perguntou um menino mais novo, de cabelo preto.

— Deixa — disse o mago. — Ele precisa ficar sozinho.

Todos voltaram ao trabalho, ainda um pouco abalados.

Pela parede de vidro, observei Felipe indo na direção do bloco do curso de Artes de Combate. Peguei a tesoura no chão e deixei sobre a bancada, antes de voltar a podar.



MAYA

16h02

terça


Deixei o avental e todo o material na área correta quando o horário acabou. Fui para o bloco de Artes de Combate, mesmo já tendo sido alertada de que não deveria estar ali. De repente, alguém tocou meu ombro, e eu parei para encarar. Era o menino menor, o feiticeiro.

— Oi — disse ele, um pouco tímido. — Você está procurando Felipe, né?

— Sim. Tava me observando?

— Desculpa. Eu só percebi que você estava preocupada. — Ele olhou para os lados. — Meu nome é Shipp. Eu sou aluno do projeto de extensão, graças a Felipe. Faço Ensino Médio perto daqui, na verdade. Eu sou muito grato a ele e me preocupo. Então, se você acha que pode ajudá-lo… Ele deve estar na sala de esgrima. É o refúgio dele.

— Ok. Obrigada pela ajuda. Meu nome é Maya. Pode contar comigo se precisar.

Ele sorriu e eu continuei meu caminho.

Entrei novamente naquele corredor e tentei parecer invisível até achar a sala mencionada pelo Shipp.

Abri a porta com cuidado; de fato, ele estava lá. Era o único aluno, na verdade. Quando soube onde ele estava, imaginei que, talvez, ele estivesse descontando a raiva em algum objeto de treinamento. No entanto, ele seguia fazendo poses de ataque com muita tranquilidade.

Eu não quis me acusar, então demorou um pouco para que ele me notasse. Ele ficou surpreso. Ainda mantendo a calma, sua primeira reação foi.

— Você não pode entrar aqui — disse ele.

— Eu sei — eu disse. — Me avisaram isso ontem. Mas eu quis ver como você estava.

Ele voltou a fazer poses.

— Não sei se é uma boa ideia.

Hesitei. Ainda assim, decidi questionar, com delicadeza.

— Por que não?

Ele parou novamente e olhou para mim, com uma cara de culpado.

— Você exalta os meus nervos.

Ergui as sobrancelhas, surpresa. Não esperava isso vindo dele. Me virei para ir embora.

— Não é uma coisa ruim — ele se adiantou em dizer. Voltei minha atenção para ele. — Quer dizer, não necessariamente. Eu quero dizer que você me deixa instável. Só que… eu não me dou muito bem com instabilidade.

— Você parece saber muito sobre mim. Ou… sobre como você se comporta em relação a mim, sendo que acabamos de nos conhecer.

— É que… é complicado. E eu não quero te magoar, então…

— Você prefere que eu me afaste? — perguntei.

Ele hesitou, com a respiração falha por causa do exercício.

— Seria o mais fácil a se fazer.

Assenti.

— E o mais difícil? — perguntei.

— Achar uma forma de conviver. Uma forma de lidar.

Novamente, confirmei com a cabeça, e olhei ao redor, observando os detalhes da sala. Totalmente branca, com o chão coberto de tatame e alguns objetos de treinamento, como manequins e suportes de espadas.

— Aqui é o seu refúgio? — perguntei.

Ele confirmou, também olhando ao redor.

— Meu lugar de paz. Sem espelhos. E é uma atividade que exercita a minha paz.

— E a estufa não é isso?

— Na estufa ele me atenta muito. Aqui é um espaço de aprendizado, então… ele costuma segurar a onda, principalmente depois que o treinador deu uma bronca nele. A real é que… essa atividade me ajuda a exercer o controle. 

— E eu sou o descontrole. Então, se eu treinasse com você, talvez isso ajudasse. Ou eu tô errada?

Ele se deixou sorrir.

— Não é permitido.

— O treinador Alfa não precisa saber — eu disse abaixando para tirar as botas. Ainda estava desamarrando quando olhei para ele, que escondia um sorriso bobo. — Isso é, se você quiser. Se achar que é uma boa ideia.

Ele deu de ombros.

— Podemos tentar.

Eu sorri. Tirei as botas, peguei uma espada no suporte e entrei no tatame.

— Me ensina — eu pedi.

— São quatro poses simples para começar — disse ele, fazendo a primeira. Ele foi me guiando e me ensinando. — O segredo é manter a calma. Paz de espírito.

Fechei os olhos, tentando sentir calma. 

Depois de um tempo, ele começou a corrigir o que estava errado em minhas poses.

— Não, levanta mais o cotovelo — disse ele, rindo um pouco. Eu também ri, e tentei me consertar. Ele tocou levemente meu cotovelo para me corrigir, e olhou para mim.

— É isso — disse ele, um pouco sério, mas depois prendeu o riso de novo.

Foi assim por mais algumas vezes.

Depois de algum tempo, a porta se abriu. O treinador Alfa tomou uma expressão um pouco debochada.

— É sério? Senhorita Fujita, achei que tinha explicado.

— Ela tá me ajudando — explicou Felipe, rapidamente.

— Ah, é? 

— Com aquele meu problema.

O treinador Alfa mudou algo em sua expressão, talvez ficando mais… pacífico.

— Hum.

Felipe abriu um sorriso amarelo.

— Deixa a gente treinar mais um pouco? Por favor.

O treinador torceu uma boca.

— Tudo bem, se isso ajudar… Só… não namorem aqui, tá?

Ergui as sobrancelhas, ao mesmo tempo em que o treinador fechava a porta. Olhei para Felipe, que estava da cor dos olhos do outro cara.

— Não liga pra ele — disse ele. — É que muitos alunos fazem esse tipo de coisa.

— Eu imagino. Vamos continuar? 

Ele confirmou energicamente, e voltou para a primeira pose. 



MAYA

17h45

terça


— O que vai fazer à noite? — perguntei, enquanto saíamos da área de Artes de Combate.

— Não tenho nada planejado. E você?

— Tenho meu primeiro treino do time de vôlei — eu disse, com certo tédio. — Nem sei por que me meti nisso. Você não faz nenhum esporte?

— Na real, o Jae me convenceu a entrar no time de basquete.

— Ok. Qualquer dia desses assiste o treino, se quiser.

— “Qualquer dia” pode ser hoje? — perguntou ele.

Hesitei um pouco.

— É que… é o primeiro, eu devo pagar algum mico, então… Vamos deixar pra quando eu souber minimamente o que eu tô fazendo.

— Eu aposto que você vai se dar bem no vôlei. Mas tudo bem, me avisa quando estiver pronta para uma visita.

— Aviso. Você quer conectar pulseira?

Ele confirmou, sorrindo.

“Conectar pulseira”. A pulseira é um dispositivo praticamente obrigatório, um cordão no pulso com uma conta tecnomágica que faz praticamente tudo, como um header, mas uma das principais funções é se conectar com seus amigos.

Eu e Felipe aproximamos as pulseiras e eu fiz um comando simples para criar a conexão e, assim, podermos conversar por texto, áudio ou vídeo.

— Prontinho — disse ele. — Te vejo amanhã na estufa?

Eu assenti.

— Claro. Até amanhã, bipolar.

Ele riu um pouco, e foi em direção aos dormitórios, enquanto eu seguia para o ginásio.

Entrei no vestiário e coloquei uma roupa de ginástica que eu tinha trazido na guarda-tudo, para não ter que voltar ao meu quarto. Era um short de lycra e uma camiseta soltinha. Prendi o cabelo em um rabo de cavalo e coloquei tênis esportivos.

Fui para a quadra de vôlei, onde tinha várias meninas com uniforme de treinamento da atlética, e algumas com roupas genéricas, que deveriam ser calouras.

— Oi, você deve ser a Maya — disse uma delas, que tinha o cabelo castanho com as pontas loiras. — Eu sou Ana Laura, capitã do time. Vamos começar com alguns exercícios fáceis hoje. Meninas, formem trios para treinarmos manchete.

Fui rapidamente chamada para um dos trios. As meninas pareciam ser bastante simpáticas.

Tinha poucas pessoas nas arquibancadas, mas, durante o intervalo, uma delas me chamou atenção em particular. Era Felipe, comendo pipoca enquanto assistia a tudo atenciosamente. Só que ele estava de óculos escuros, e agora eu já sabia o que significava.

— Merda — murmurei.

— Próximo exercício — disse a capitã.

Dei meu melhor para manter minha concentração, mesmo sabendo que aquele cara estaria me julgando. Felizmente, os exercícios não estavam tão complicados, e eu já tinha um pouco de experiência.

Quando o treino acabou, eu fui para a arquibancada, ao mesmo tempo em que ele a descia para falar comigo. Ele se debruçou no corrimão, me olhando com aquele sorriso cínico.

— Até que não foi tão ruim.

— O que você tá fazendo aqui? — perguntei, irritada.

— Caaalma, princesa, você tá muito estressada! Achei que treino servia para relaxar.

Cruzei os braços, inconscientemente batendo o pé.

— Já avisei: não entra em guerra comigo — disse ele. — É a pior coisa que você pode fazer na sua situação.

— Que situação você quer dizer?

— Querendo amigar com meu bodymate, é claro. De todo modo, eu só vim aqui porque queria deixar claro pra você de uma vez: ele quer te beijar.

Fiz uma careta.

— Que brincadeira sem graça. Você não tem como saber.

— Não tenho? Eu habito no mesmo corpo que ele.

— Não simultaneamente.

— As coisas são mais complexas do que você acha. Eu consigo sentir algumas emoções. Nunca é tão claro, mas eu nunca vi ele assim. Ele tá caidinho por você. Ele disse algo como… você desestabiliza ele, né? É por isso. Ele tá doidão na sua. 

Balancei a cabeça negativamente.

Eu tinha uma vaga ideia de que estava mentindo para mim mesma. Eu também tinha ficado interessada. Aquele arquétipo de menino triste por carregar um fardo tão terrível tinha me conquistado rápido, até. E ele não deveria ter muito com quem contar, então também fazia sentido ele ter se encantado comigo.

— Mesmo se estiver, eu prefiro que ele me diga.

— Ele não vai dizer. Ele é frouxo demais pra isso.

Meu reflexo fez com que eu desferisse um tapa muito forte no rosto dele. O rosto se virou, o óculos voou pra longe, e os olhos vermelhos tiltaram. Pela primeira vez, eu vi a troca acontecer com os olhos abertos, e de forma bem instável.

A expressão dele se tornou confusa e transtornada. Felipe voltou o rosto para mim lentamente, como se já soubesse o que tinha acontecido. Uma mancha vermelha com o vago desenho da minha mão apareceu na bochecha dele.

— O que esse merda te disse? — perguntou ele, com os olhos molhados.

Ele deveria estar sentindo dor. A dor que era para o Vermelho. Eu sabia que não seria fácil, nada naquele relacionamento. Então, decidi que era a hora de pular algumas etapas.

Sem pensar muito, eu fiquei na ponta dos pés para alcançá-lo e o beijei. Não fui tão rápido para que ele entendesse, mas também não muito devagar, para que ele não pensasse muito. Não o segurei: se ele não quisesse, poderia se esquivar. As bocas foram nosso único contato. Não foi um beijo seco, mas também não foi muito intenso. Não demorou muito, mas também não foi um selo. Enfim, apenas o suficiente. O equilibrado. O perfeito.

Depois, eu desci das pontas me afastando, enquanto continha um sorriso. Ele, por sua vez, ficou boquiaberto, estupefato. Eu me permiti soltar o ar pelo nariz, uma leve risada.

— Até amanhã —  eu disse, e me afastei, indo para o vestiário.



MAYA

20h27

terça


Peguei meu jantar no refeitório e fui até onde Duda estava sentada, conforme eu tinha identificado na fila.

— E aí, roomie? — perguntei. — Como foi seu primeiro dia real de aula?

— As aulas foram legais, mas a parte mais interessante foi ter jogado com o time de e-sports.

— Entrou no time? — perguntei, animada.

— É, eu fiz um teste, e acho que vou gostar dessa parada. Eu fiquei lá a tarde toda e um pedaço da noite, acabei de sair.

— Nossa, então foi bom mesmo!

— E você? Deu tudo certo na jardinagem?

— Minha tarde foi um pouco mais complicada do que um jogo. Eu fui para a jardinagem, reencontrei um inimigo que tem duas personalidades, descobri que ele tem duas personalidades, me apaixonei pela personalidade legal, tive um desentendimento com a personalidade não-legal; o cara saiu da jardinagem e eu segui para a área de Arte de Combate, invadi a sala de esgrima e treinei com ele. Depois, fui pro meu treino de vôlei, onde a personalidade não-legal ficou me assistindo. Agora há pouco, o treino acabou, eu o confrontei, dei um tapa nele e um beijo na personalidade legal.

Duda vinha assistindo tudo com a expressão de choque só se intensificando, até que ela disse:

— Você O QUÊ?

Eu ri da reação dela.

— Peraí, você vai ter que me contar essa história direito, Maya! Eu preciso de detalhes, e de explicações. Como assim duas personalidades?

Eu ri ainda mais.

— Calma, eu vou te contar tudo!



MAYA

21h13

terça


A parte boa do treino foi ter tomado banho depois, no vestiário. Com isso, eu pude simplesmente chegar e deitar. Fiquei lendo, pra variar, mas recebi uma nova mensagem.


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Felipe

Desculpa, eu não vou conseguir esperar até amanhã. Eu estou em choque até agora. O que aconteceu?

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Eu ri um pouco com a mensagem.


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Maya

Desculpa eu por te pegar de surpresa. Eu vou explicar, mas… você ficou chateado?


Felipe

Chateado? É, eu tô bem chateado.

Você me deu um beijo maravilhoso e depois saiu como se nada tivesse acontecido.

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Precisei rir alto dessa.


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Maya

Achei que foi muita coisa pra um primeiro dia. Eu também estou confusa sobre tudo.

Essa coisa com você e ele não vai ser fácil.

Achei melhor fazer dessa forma.


Felipe

Ele disse algo que te irritou, e você deu um tapa nele.

E depois você me beijou.

Foi isso?


Maya

Foi exatamente isso.


Felipe

E o que ele disse?


Maya

Ele disse que você não assumiria seus sentimentos.

Não com essas palavras.


Felipe

Faz sentido.

Desculpe se não me abri com você.


Maya

Você me conhece há menos de 24h! Não fez nada de errado. Eu que estou sendo rápida demais.

Eu só queria que ficasse tudo claro logo.


Felipe

E está claro pra você?


Maya

Não completamente.

Mas, se você aprovou minha decisão, já é um ótimo começo.


Felipe

Eu adorei o que você fez. Sério.


Maya

Mas…?


Felipe

É ele quem me preocupa, como sempre.

Se eu te beijar e ele assumir o controle?


Maya

A ideia de beijá-lo não me agrada, mas eu posso conviver com isso.


Felipe

????


Maya

É uma escolha que temos que fazer. São só duas opções.

Ou ficamos separados, ou ficamos juntos e aceitamos o que vier.

Mas nós podemos ir mais devagar.

Se você quiser isso.

Assumir o risco.


Felipe

Se você quiser, eu quero, é claro que quero.

Mas é mais sobre você do que eu. Você quem vai ter que lidar com ele se ele aparecer, entende?

Eu apenas me frustro depois. Mas se você estiver bem, é o que importa.


Maya

Eu vou ficar bem.

Esse bandidinho não me assusta.


Felipe

kkkkkkkk

Você é perfeita. Eu não tenho outra forma de te descrever em poucos caracteres.

Boa noite. 🥰


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Não sei descrever o quanto as últimas mensagens aqueceram meu coração. Eu estava sorrindo como uma idiota.


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Maya

Boa noite. 💘


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