EP.1. RECEPÇÃO
- Jéssica Sanz
- 23 de jan.
- 22 min de leitura
MAYA
8h45
segunda, primeiro dia de aula
“Calma, Maya, você não está atrasada”, eu disse para mim mesma.
Estava sentada no banco do Rapidão, o trem que conectava as principais cidades em Jesver. Ele usava magia para fazer o trem levitar a alguns centímetros dos trilhos, ou seja, unia magia e tecnologia. O apelido foi dado pelos alunos da Drim University, a maior universidade de Jesver. O trem era muito frequentado por eles, que vinham de todos os lugares para estudar na capital.
Eu tinha embarcado na estação de Pin, minha cidade. Ficava na região de Mirai, uma das regiões mais características de Jesver, principalmente por dois motivos. Número 1: todos em Mirai tinham basicamente o mesmo tipo de magia, o que era bem chato. Eu estava ansiosa para conhecer os diversos tipos de magia na Drim University. O segundo motivo é que todos os miraianos praticam agricultura e jardinagem, já que esta é a principal atividade econômica da nossa região. Produzimos e exportamos para todo Jesver plantas para fins alimentícios, decorativos e medicinais.
Ah, a terceira coisa que tornava os miraianos únicos: olhos verdes. Todos nós, sem exceção. Eu não conseguia imaginar como seria estranho estar em um lugar com tantas pessoas diferentes de nós. Muita coisa para descobrir, e para me acostumar.
Foi anunciada a próxima parada: a estação da Drim, que ficava em frente à universidade. Eu e mais vários jovens nos levantamos e fomos para as portas do trem.
Observei meu reflexo no vidro da porta, checando se estava tudo bem com minha aparência. Estava usando uma blusa branca e justa de gola alta e manga comprida, de um tecido grosso de malha. Além disso, um vestido azul marinho de alça fina com um cinto de couro marrom. Minha pequena mochila marrom também estava nas costas. Meu cabelo loiro e cacheado estava cuidadosamente arrumado, com as mechas frontais torcidas para trás. Nos pés, sapatilhas pretas com uma tira no tornozelo.
A porta abriu e eu saí. Havia uma quantidade enorme de pessoas na estação, muitos jovens caminhando em direção à saída. Alguns estavam acompanhados de suas famílias, mas a maioria estava só, o que também era meu caso. Subi as escadas para a saída da estação.
A luz do dia atravessou meus olhos enquanto eu subia, enevoando um pouco a visão, mas, aos poucos, consegui vê-la, majestosa contra o sol. A fachada da Drim University.
O exterior da universidade tinha um estilo clássico, que a fazia parecer com um museu, mas tinha um grande pórtico que deixava a entrada bem acessível.
Continuei encarando-a no caminho até o meio-fio. Esperei o sinal ficar vermelho para atravessar, junto a outros jovens universitários. Subimos mais um lance de escadas para alcançar o pórtico e o atravessamos.
Lá dentro, havia um mundo de coisas. A princípio, um espaço amplo, com áreas de gramado, áreas asfaltadas e também alguns pátios cobertos, que margeavam salas. Dava pra ver alguns dos diversos prédios que compunham o lugar, que poderiam ser salas de aula, dormitórios, laboratórios etc.
Mesmo com muita informação, que poderia deixar qualquer novato perdido, era impossível ignorar o banner onde lia-se “recepção de calouros”. Abaixo, uma seta apontava para o lado esquerdo, onde ficava uma das quadras. Em vez de receber algum time esportivo, a quadra estava cheia de cadeiras e com um pequeno palanque.
Instantaneamente, mudei de rota, indo em direção à quadra. Havia um fluxo considerável de novatos indo para lá, enquanto alunos mais velhos seguiam para a frente, provavelmente indo para seus dormitórios.
A entrada da quadra era por um pequeno portão, onde uma funcionária uniformizada estava entregando panfletos aos calouros que entravam, com um sorriso simpático de boas vindas. Eu peguei um e continuei entrando, escolhendo um lugar legal para me sentar. Esperei por alguns minutos, encarando o panfleto, que tinha uma estampa suave de galáxia com letras brancas. Ele era um tipo de livreto com umas quatro páginas, alto e estreito. Na capa, lia-se “Calouro, bem-vindo à Drim University”, e, mais abaixo, em letras menores, “Aqui, seus sonhos se tornarão realidade”. Tive que fazer uma careta com a frase clichê, mas acabei sorrindo.
Estudar na Drim era o sonho de muitos jesverianos. Em parte, pelos ótimos cursos, mas, para muitos, pela experiência de fazer uma universidade integral na capital. Até uns dois anos atrás, no máximo, eu não tinha esse sonho. Gostava de estar em Mirai com a minha família, mas… de repente. sair de casa se tornou uma urgência, e a Drim se tornou uma oportunidade.
— Testando, testando! — ouvi a voz vindo lá do palco. O homem de camisa polo azul deu umas batidinhas na sua gargantilha preta. — Parece que meu neckmic está funcionando!
Neckmic. Eu nunca tinha visto um ao vivo. Era mais uma tecnomagia jesveriana. Bastava colocar a garantilha e ativar com magia para dar amplitude à sua voz.
— Então, pessoal, meu nome é Tensai. Sejam muito bem-vindos à nossa querida universidade! Todos já receberam seus panfletos responsivos, certo? Muito bom. Então, vamos dar uma olhadinha nele para entenderem o básico para começarem. Podem abrir.
Virei a capa do panfleto, encontrando a lista completa de cursos na primeira parte.
— A primeira página é sobre os cursos que oferecemos. Como se matricularam em um curso específico, vocês já sabem qual é o de vocês.
Olhei para o panfleto, onde o nome do meu curso brilhou levemente entre os outros: Diplomacia.
— A novidade da página é o diagrama de aula completo de vocês. Vocês encontram o horário, sala e professor de cada matéria.
De fato, na segunda parte daquela página havia uma tabela vazia, que foi se preenchendo com as informações do meu horário.
— Podem ir para a próxima página, nossa lista de atividades!
Eu virei a página enquanto Tensai explicava.
— Temos algumas atividades bem interessantes para ajudarem vocês a se integrarem, especialmente os clubes e os times esportivos. Na parte de esporte, é legal saberem que temos duas grandes atléticas aqui: os Dragões e as Raposas. Não existe limite para participação de atividades, então fica a critério do bom senso de vocês.
Esporte não era algo que me atraía especialmente. Por isso, fui logo olhar a lista de clubes, e encontrei o de jardinagem. Era um dos clubes mais famosos da Drim, ao menos em Mirai.
— Antes de tomar qualquer decisão, recomendamos que passem na feira de atividades no pátio norte. Cada clube e cada time prepararam um estande especial para apresentarem a vocês o que eles têm feito de bom. Ela vai ser apenas agora na parte da manhã, então fiquem atentos! Podemos ir para a última página.
Eu e os demais calouros viramos a página, encontrando uma sequência coringa de uma letra e três números na parte de cima: X000; na parte de baixo havia o desenho de uma bússola.
— Essa última página é sobre o alojamento de vocês. Mesmo com incríveis tecnologias e magias de transporte que podem levar vocês para casa bem rápido, queremos que aproveitem tudo o que a Drim pode oferecer em tempo integral. Por isso, todos os alunos ganham um quarto, dividido com apenas uma pessoa. Nos seus panfletos, vocês encontram o número da suíte.
Olhei novamente para o meu, que agora exibia o meu quarto: D312.
— A letra é o bloco onde o quarto se encontra, o primeiro número é o andar, e os outros dois o número do quarto. Abaixo do número, está a bússola. Ela vai direcionar vocês aos seus respectivos colegas de quarto, que são calouros como vocês. Quando encontrarem seus roommates, a bússola os levará ao quarto. Obviamente as suítes estão zeradas, prontas para personalização. Se você não trouxe seu quarto, passe na nossa loja de decoração que fica ao lado do refeitório.
Olhei para minha mochila, que estava agora no meu colo. Eu tinha trazido meu quarto, é claro.
— Agora, podem se levantar e procurar seus roommates. Em seguida, iniciem a busca pelos seus dormitórios.
Um pouco hesitantes, eu e os demais colegas nos levantamos. Olhei para a bússola, que brilhou um pouco e apontou para algum ponto mais atrás. Todos os calouros começaram a andar, seguindo a bússola e bagunçando as cadeiras.
— E lembrem-se — acrescentou Tensai, quando a atenção já não estava completamente nele — de que hoje à noite o pátio norte receberá a festa dos calouros, para vocês se conhecerem melhor e comemorarem o início dessa jornada.
Fui andando para trás, mas a bússola mal se mexeu, mesmo depois de alcançar o portão. Fiquei olhando para o lado de fora, tentando identificar alguém que batesse com a agulha, mas não havia ninguém.
— Algum problema? — perguntou um garoto ruivo, que estava por perto. Certamente, tinha notado minha cara de paisagem.
— Acho que minha roommate não está aqui — eu disse.
— Deve estar atrasada — disse outro garoto, de cabelo castanho, que chegou perto de nós. Os dois tinham olhos estreitos com a parte interna curvada para baixo. Certamente, eram da capital. O garoto novo olhou para o ruivo. — Acho que você é meu colega de quarto.
O ruivo olhou para seu panfleto.
— Minha bússola concorda — disse ele. — Eu sou Taesung.
— Jihyung. Vamos procurar nosso quarto.
— Claro. Boa sorte, moça! — disse Taesung, antes de sair da quadra com seu roommate. Olhando melhor, notei que o moço Jihyung tinha no cabelo um tom leve de roxo.
— Obrigada — eu disse, antes que eles se afastassem.
Olhei mais uma vez para o panfleto. Se minha roommate estava atrasada, seria melhor não esperar por ela.
Saí da quadra e procurei por placas que indicassem o bloco D. Fui seguindo as placas, e passei perto da feira de atividades, mas decidi ir ao quarto primeiro.
Entrei no salão do prédio e peguei um dos elevadores, apertando o botão do 3º andar. Em poucos minutos, estava no corredor, procurando pelo quarto 12.
Quando me aproximei da porta, a trava brilhou. Eu nunca tinha visto aquele sistema: era uma trava redonda de metal, responsiva aos habitantes do quarto. Apenas encostei no círculo e a porta se abriu suavemente.
O quarto era amplo e vazio, completamente branco. Claramente dividido em duas partes, sendo que no meio ficava o banheiro. Escolhi o lado da direita e fechei a porta atrás de mim.
Na mochila, peguei uma guarda-tudo. Era uma pequena esfera mágica onde poderíamos comprimir o que quiséssemos. No meu caso, eu tinha guardado meu quarto. Esfreguei a bolinha em minhas mãos e a soprei. Uma fumaça azul voou a partir dela e preencheu o quarto, tomando o lugar dos móveis no chão e nas paredes. Quando a névoa se dissipou, encontrei minha cama, mesa de cabeceira, guarda-roupa, escrivaninha e uma pequena estante de livros. Tudo foi rearranjado para se acomodar àquele espaço, tomando uma organização diferente da que tinha na minha casa.
Fiz algumas pequenas modificações, que me tomaram alguns minutos; depois, fui para a feira de atividades.
O pátio norte era um espaço com calçamento de tijolos de concreto a céu aberto, onde várias mesas haviam sido montadas como “estandes” dos clubes da universidade. Dei uma olhada geral, notando os clubes, que eram dos mais diversos. Havia clube de fotografia, clube do livro, clube de corte e costura, clube de cinema, clube de robótica, entre outros. Mais à frente, era notável uma quantidade considerável de estandes roxos, e outra quantidade considerável de estandes vermelhos. Supus que deveriam ser as duas atléticas rivais.
Sem ligar para os esportes, fui direto para a mesa com toalha verde com uma faixa branca onde lia-se “Clube de jardinagem”. Sobre a mesa, havia alguns vasinhos com espécies que eu conseguia reconhecer (ao menos a maioria).
Me aproximei para inscrever no clube, notando que havia um único rapaz responsável pelo estande. Sentado na cadeira de forma confortável, apoiando os pés na mesa como se estivesse na praia. Ele usava um blazer vermelho e, a julgar por isso e pelo cabelo preto, ele deveria ser um feiticeiro. Isso se fosse um miraiano, porque os óculos escuros impossibilitaram que eu checasse se os olhos eram verdes. Na verdade, eu não sabia nem se ele estava acordado.
— Bom… dia? — eu disse, receosa.
— Bom dia — disse ele, sem muita animação. — Maya Fujita, eu suponho.
Ergui as sobrancelhas.
— A partir de qual evidência?
— Eu dei uma olhada na lista de calouros dessa sessão e seus respectivos pontos de origem. E, bem, eu só encontrei uma miraiana. Se sua aparência de maga não a denunciasse, o simples fato de ir direto para o clube de jardinagem é coisa de caipira.
Contive uma risadinha irônica.
— Não tenho nem como considerar isso um insulto, já que você está na mesma situação que eu. Um miraiano no clube de jardinagem. Aliás, não tem muito mais de nós? Cadê os outros caipiras? Não me diga que você é o único.
— Não, não sou o único. A maioria prefere continuar plantando e adubando, ou fazendo coisas mais interessantes. Ninguém se interessa por essa porcaria de feira.
— Isso inclui você, eu imagino. Mas te jogaram pra essa função. Perdeu alguma aposta universitária, foi?
Ele deu uma risadinha.
— Eu escolhi vir. Eles não gostam de ser gentis, mas eu…
— Não é nada gentil, se quer saber.
— Eu gosto de lidar com gente novata, gente que não entende nada e faz todo tipo de pergunta idiota, como você. É divertido.
Tentei não transparecer o quanto o comportamento dele estava me deixando irritada. Tudo o que ele queria era que eu me afetasse, mas eu não daria esse gostinho a ele.
— Eu não sei que tipo de pessoa você acha que eu sou, mas eu garanto que você não me conhece, a não ser que seja telepata, o que eu duvido. E se você quer fazer eu me sentir mal por estar aqui, pode desistir. Eu saí de Mirai para ser feliz, e livre.
Quando estava terminando, notei que ele estava fazendo um fantoche com a mão, ironizando meu monólogo com um sorriso malicioso.
— Tá, que seja, ninguém se importa. Vai entrar pro clube, ou não? — ele pegou a prancheta.
— Se esse clube tiver mais caipiras que não sejam tão antipáticos como você, eu vou entrar, sim.
Ele deu mais uma daquelas risadas.
— Eles são legais, se quer saber — disse ele, me entregando a prancheta. — Mas eu tenho certeza de que você vai acabar gostando de mim.
Assinei meu nome da lista, enquanto negava com a cabeça, mesmo contendo um sorriso, por achar que ele estava enganado.
— Vamos ver então. Vai me dizer seu nome ou eu vou ter que me referir a você como “garoto antipático”? — perguntei, devolvendo a prancheta.
— É Felipe Rider. Obrigado pela sua inscrição. Agora, eu posso dormir até a próxima sessão.
Ele foi se recostando na cadeira, voltando à posição de conforto inicial. Dessa vez, eu tive certeza de que ele tinha cochilado.
Voltei meu olhar para a feira e continuei explorando. Parei em um ponto mais ao centro e observei o entorno, tentando achar alguma coisa interessante. Quando fui notar, havia uma garota parada exatamente ao meu lado, olhando para seu panfleto responsivo aberto na última página.
— Acho que você é a minha roommate — disse ela.
A garota tinha um cabelo castanho claro, bem cacheado, arrumado em um coque alto e despojado. A franja se mantinha contida por uma faixa no mesmo tom claro de jeans da calça dela. Ela usava uma camiseta branca do jogo Woods Gods e tinha um casaco rosa shock amarrado na cintura, além de tênis tipo All Star com cano alto.
— Ah. Você apareceu. Não foi na sessão de recepção?
— Bom, eu cheguei atrasada. Tive um probleminha na hora de sair de casa.
— Tudo bem, imprevistos acontecem. Qual é o seu nome?
DUDA
8:20
segunda, primeiro dia de aula
— EU PRECISO QUE ALGUÉM GANKE ESSA LANE! Gente, é sério, eu preciso muito de ajuda, na trilha do meio.
Eu estava com a aparência de Iara, dentro da realidade virtual; mais especificamente dentro da Glory Forest, na trilha do meio, lutando contra Hina, a deusa da lua polinésia.
— Não dá, Duda, tá todo mundo ocupado! — ouvi a voz da minha amiga bem nítida, mesmo ela estando em outra trilha. — E não tem uma rota que não esteja difícil.
— Eu acho que é melhor a gente se render.
— O quê? Não, nada de render! Ainda dá pra virar.
Invoquei o relógio. Na realidade aumentada, é só pensar em um elemento necessário e ele aparece no canto da visão.
— Olha, eu já deveria ter saído de casa, Tetê. Não posso perder tempo com uma partida perdida.
— Não tem nada perdido. E fica calma, é o primeiro dia de aula! Você não vai perder nenhuma prova.
— Não sei não. É a Drim, eles devem levar as coisas a sério. E eu ainda tô de pijama!
— Que horas é a sua sessão?
— 9h.
— Ainda dá tempo, relaxa!
— Claro, eu ainda tenho que me arrumar, guardar o meu quarto e pegar o Rapidão para a capital. Tá tranquilo!
— Riveiras não é tão longe de Soul… Ai, droga, Ogum tá aqui!
— Legal — resmunguei. — Só porque eu pedi gank, o time inimigo gankou. Vou puxar a rendição.
Continuei lutando na trilha, e a votação para rendição foi quase unânime.
— O quê? Quem foi que recusou?
— Eu, né. Acabei de falar que ainda não é hora de se render!
Apareceu na tela o aviso de que Ogum eliminou a Teresa.
— Tem certeza? — eu disse. — Tê, é só uma partida. Eu realmente preciso ir.
— Ai, tá bom. Puxa a rendição.
Recuei para meu território salvo e puxei a rendição. Depois disso, já arranquei os óculos de realidade virtual, o que fez a tela do jogo se projetar como um holograma. Comecei a tirar o pijama e colocar a roupa. Pelo menos isso já estava separado. Eu nunca me arrumei tão rápido na vida. Já estava calçando os tênis quando a palavra derrota apareceu na tela. Segurei os óculos só para ser ouvida.
— Tô correndo agora, Tê, mais tarde falo com você!
Apertei o botão para desligar e continuei me arrumando. Deixei o cabelo solto, mas coloquei na mochila tudo que precisava para arrumar no caminho. Amarrei o casaco na cintura, peguei a mochila e saquei uma guarda-tudo. Invoquei todos os objetos do quarto, inclusive os óculos. Assim que ele foi guardado, eu saí correndo.
Passei na cozinha e peguei uma maçã, continuando o caminho para a porta. Me despediria dos meus pais se eles estivessem em casa, mas já tinham saído para trabalhar.
Corri para a estação, torcendo para ter um trem me esperando. Nisso, até que dei sorte. O trem para Soul estava nos trilhos. As portas começaram a fechar, mas eu invoquei um campo de força redondo e brilhante que ficou entre elas. Me apressei para passar por baixo do campo de força e entrei. Desfiz o campo e as portas se fecharam.
Me deixei cair em um banco qualquer e respirei fundo. Mesmo que o trem fosse muito rápido, eu nunca chegaria na hora. Torci para que Michelle estivesse certa e que o atraso não impactasse tanto.
Durante a viagem, terminei de comer a maçã e arrumei meu cabelo. Separei a franja, fiz um coque alto e volumoso com a maior parte e prendi com o elástico. Depois, passei creme na franja e nos fios soltos, finalizando. Por último, coloquei meu arquinho com laço, no mesmo tom claro de jeans da minha calça.
Antes mesmo que o trem parasse na estação, me posicionei na porta. Assim que ela abriu, iniciei uma nova corrida para fora. Ao menos, a universidade ficava bem em frente à estação.
Eu já tinha visitado a instituição algumas vezes, e sempre me imaginei entrando gloriosamente como aluna, mas não tinha tempo para sentimentalismo. Quando entrei, bati o olho na placa que indicava a recepção de calouros. Era em uma quadra, que estava cheia de cadeiras, mas trancada e sem ninguém. Fiquei algum tempo agarrada à grade, tentando achar alguém com quem eu pudesse falar.
— Ai, ai, mais uma atrasada, que dó.
O comentário debochado veio de trás de mim. Me virei já irritada e encarei a garota vestida com um uniforme vermelho e branco de líder de torcida, com um rabo de cavalo preto e liso que tinha um laçarote daqueles.
— É, eu tive um problema pessoal e perdi a recepção de calouros, pode me dizer pra onde eu tenho que ir agora?
— Quem poderia te dizer isso é o pessoal da recepção de calouros, você podia tentar… Ah, é, já acabou! Você deveria tomar mais cuidado com seus compromissos, caloura.
Ela deu mais um risinho debochado e saiu andando. Cerrei os punhos, contendo a energia para não ir atrás dela e cometer uma agressão.
— Você tem que conseguir um panfleto.
Me virei para encarar a voz que me aconselhava. Era outra líder de torcida, mas com uniforme roxo. Ela estava carregando duas caixas cheias de coisa, uma em cada braço.
— O panfleto — continuou ela, um pouco cansada, mas se esforçando pra ser gentil — vai te levar à sua roommate, e ela vai poder te ajudar.
— Muito obrigada — eu disse.
Ela sorriu e continuou andando. Eu olhei ao redor, tentando achar algum panfleto perdido.
— Quer saber? — disse ela, se voltando para mim. — Ela deve estar na feira de atividades. Eu tô indo pra lá agora, se quiser me seguir.
— Boa ideia! — eu disse, indo para perto dela. — Aliás, deixa eu levar uma dessas caixas.
— Eu agradeço! — disse ela, me dando uma das caixas de papelão.
Espiei o interior, enquanto andávamos. Havia troféus e fotos do time de cheerleading.
— Eu tenho certeza que vamos achar algum panfleto perdido na feira — disse ela. — Sempre tem algum calouro que não liga muito pra papel… mesmo que seja um papel mágico.
Nós duas rimos.
Acompanhei a garota até a feira, onde havia vários estandes dos clubes e dos times. Eu a segui até um estande onde havia outros líderes de torcida. Na verdade, várias garotas e um menino, todos com feições souleanas. Eles estavam arrumando o estande com coisas roxas. Eu e ela deixamos as caixas sobre a mesa recém-forrada.
— Muito obrigada, é…
— Duda.
— Prazer, Duda, eu sou a Sunny. Se precisar de qualquer coisa, pode contar comigo, e bem-vinda à universidade. Gente, alguém tem algum panfleto responsivo sobrando?
— Aqui — disse uma das garotas, e entregou o panfleto para Sunny, que me entregou.
— Eu agradeço muito!
Abri o panfleto e fui dando uma olhada nas orientações. Nas primeiras páginas, informações sobre os cursos e atividades. No fim, o número do quarto e uma bússola.
— Essa bússola vai te levar à roommate — explicou Sunny.
Eu assentiu, sorrindo.
— Valeu mesmo!
Com isso, dei as costas e segui a bússola até alcançar uma garota miraiana, que observava os estandes da feira.
— Meu nome é Duda — eu disse, depois do contato inicial.
— Eu sou Maya — disse ela, me cumprimentando.
— Então, o que a gente tem que fazer agora?
— Olha, eu já fiz tudo, mas vou te ajudar. São só duas coisas. A primeira é encontrar o seu clube ideal. Já que estamos aqui, podemos fazer isso antes de ir para o dormitório. Você trouxe seu quarto?
— Trouxe.
— Ótimo, então não vamos ter trabalho. Vamos curtir a feira.
— Em que atividade você se inscreveu?
— Clube de jardinagem. Atividade padrão dos caipiras.
— Ah, é legal. E você pensa em se inscrever em algo mais?
— Por enquanto, não. Talvez eu pratique algum esporte em breve, mas… primeiro, tenho que descobrir qual é a atlética mais legal.
— Ah, isso eu já descobri. É a roxa!
— Dragões. É, é bem mais miraiano que Raposas!
Mais uma vez, nós rimos. Tive a impressão de que Maya seria uma ótima colega de quarto.
— Mas conta, como você descobriu?
— Acabei de interagir com duas líderes de torcida, uma de cada atlética… A diferença de tratamento é surreal. A vermelha debochou de mim, e a roxa me ajudou.
— Vamos de roxos, então.
— Bom, eu não sirvo pra nenhum esporte. Quer dizer, só se for taekwondo, mas acho que não tem aqui.
— Eu também acho que não vai rolar nenhum time pra mim, mas seremos torcedoras fiéis!
— Pode apostar.
— Quem foi que você conheceu?
SUNNY
9:02
segunda, primeiro dia de aula
Saí correndo da reunião, depois de muito implorar com a justificativa de que precisava preparar tudo para a feira de atividades. A diretora argumentou que o time deveria estar cuidando disso sem mim, e que eu não devia me preocupar… mas eu conhecia bem aquelas pessoas.
Fui direto para a praça norte, onde aconteceria a feira, como no ano anterior. Percorri o caminho torcendo para que nosso estande estivesse pronto, mas… em vez disso, apenas uma das meninas estava em pé no local onde ele deveria estar montado.
— Michung! Cadê todo mundo? Ninguém chegou ainda?
Assim como eu, ela estava com o uniforme completo do time de cheerleading. O mesmo incluía uma blusa justa cropped branca com a logo dos dragões, mangas compridas roxas com brilhos e um detalhe branco na ponta, short branco com saia roxa apenas nas laterais, meião roxo com detalhe branco na parte de cima e tênis tipo all star branco. Ah, também tinha o rabo de cavalo com um laçarote branco e roxo e a maquiagem artística padrão da atlética Dragões, com delineado que parecia asas e uma chama roxa desenhada na bochecha. Muito detalhe, eu sei, mas faz parte!
— Eles chegaram sim — explicou Michung. — Yumi foi na sala da atlética pegar os tecidos, Jae e as meninas foram buscar mesas e cadeiras. Eles já devem estar voltando!
Só então notei várias mochilas no chão, encostadas na grade que beirava parte do pátio.
— Já era pra estar tudo pronto!
— Eu sei, e eu sei que você não conseguiu chegar antes por causa da reunião, mas… a gente também teve outras coisas pra resolver. Viemos pra cá assim que deu. Ah, olha eles!
Eu olhei para onde Michung estava olhando, e vi eles chegando, carregando as mesas.
— Eu sei que estamos atrasados — disse Jae, já na defensiva. Ele posicionou a mesa que vinha trazendo sozinho e veio pra perto de mim. — Mas vai dar tudo certo, como sempre.
Ele me deu um selinho.
Sim, Jae era meu namorado. Éramos amigos de infância, na real. Começamos a namorar na adolescência, e claro que tínhamos ido para a mesma faculdade, que tinha sido um plano de vida (muito pelo histórico familiar). A mãe de Jae tinha sido bibliotecária por muito tempo. Minha mãe era a diretora. E meu pai, bem… Ele era o reitor, mas isso foi antes dele morrer um acidente, um ano atrás.
— Muito bem, vamos agir — eu disse. — Meninas, posicionem as mesas. Cadê a Yumi?
— Tô chegando! — ouvimos a voz dela, começando a correr com um bocado de tecidos roxos nos braços. Ela colocou tudo sobre a mesa quando nos alcançou. — Tá tudo aqui!
— Ótimo. Jae e Ahra, podem pendurar a bandeira na grade. Bem alto! Michung forra as mesas com as toalhas roxas. As demais, vamos passar a faixa entre as pontas das mesas e a grade… pera aí, cadê as coisas de cima da mesa?
— Que coisas de cima da mesa? — perguntou Yumi.
— Você sabe, os troféus, essas coisas… Não pegou né?
— Não lembrei, e nem daria pra trazer tudo sozinha.
— Tá, me dá a chave, eu vou correr lá.
Yumi jogou a chave para mim e eu iniciei o percurso para a sala da atlética. Ficava um pouco longe, perto da entrada principal do campus. Por isso, me permiti dar uma corridinha leve, que não estragasse o visual. Ao menos, era um uniforme esportivo e funcional, mas eu temia pelo laçarote na minha cabeça.
Passei em frente à quadra de recepção, de onde os calouros estavam começando a sair. Me desesperei um pouco e tratei de apertar o passo.
Entrei correndo na sala e, assim que bati o olho na estante de troféus, percebi que precisaria de uma caixa.
Saí novamente da sala, fazendo questão de trancar, e fui para a lateral do refeitório, onde eles sempre deixavam as caixas antes do descarte. Peguei duas e voltei para a sala da atlética.
Puxei uma cadeira para perto da estante, coloquei a caixa em cima e comecei a colocar os troféus mais importantes, que também eram os maiores. Também escolhi alguns porta-retratos do nosso time, e dois pompons.
Nós éramos o time que mais usava aquela sala, além da diretoria, e também éramos um dos times mais premiados da atlética. Eu não podia exatamente me gabar disso, já que estava só no segundo semestre, mas eu me orgulhava da minha bandeira.
Depois de encher as duas caixas, começou o verdadeiro trabalho: levar para o estande. Me enbananei um pouco, mas consegui. Tive que abrir a porta, levar as caixas para fora, deixá-las em um banco, voltar, trancar a sala, jogar a chave em uma das caixas e equilibrar uma em cada braço. Só então, comecei o caminho.
Na volta, passei novamente pela quadra, que já estava vazia. No entanto, em frente a ela estava Valentina, capitã do time de cheerleading das Raposas, nossa atlética rival. Ela estava tentando zoar uma aluna que deveria ser uma caloura.
— Quem poderia te dizer isso é o pessoal da recepção de calouros, você podia tentar… Ah, é, já acabou! Você deveria tomar mais cuidado com seus compromissos, caloura.
Valentina saiu andando, com toda aquela pose debochada dela. Mesmo estando atrasada, me solidarizei com a aluna e decidi dar aquela informação simples. Afinal, seis meses atrás, era eu a caloura. Eu também tinha que dar o exemplo como capitã do meu time, e como filha da diretora.
— Você tem que conseguir um panfleto.
Ela olhou para mim. As caixas estavam pesadas, mas eu continuei. No fim das contas, acabei me oferecendo para levá-la à feira, já que estava indo para lá. Com isso, ela se ofereceu para levar uma das caixas, o que me aliviou muito. É como dizem, gentileza gera gentileza.
Quando chegamos ao estande, eu terminei de ajudá-la e nos apresentamos. Quando ela partiu em busca de sua roommate, continuei o trabalho de arrumar a mesa. O time tinha adiantado bastante, só faltavam as decorações de cima da mesa.
— E tem mais um detalhe — disse Jae, tirando da mochila um pequeno amplificador de som.
— Muito importante — eu disse. — Obrigada por lembrar, bae.
— Viu? — disse Yumi, com um tom um pouco irônico. — Ninguém morreu.
— Os calouros já saíram da recepção faz tempo — eu disse. — Eu tinha razão para estar preocupada.
— Mas eles ainda não chegaram — notou Michung. — Com certeza ainda estão procurando os quartos. Só tem aquelas duas ali… — ela apontou para a caloura Duda e uma colega, sua provável roommate. — e aqueles dois ali…
Ela apontou para uma dupla de garotos soulenses. Eles tinham chegado há pouco no pátio, e passearam sem dar muita atenção às barracas. Foi isso até chegarem na nossa barraca.
— É aqui! O pessoal do cheerleading!
Quem disse isso foi o que parecia ser o mais novo. Ele tinha um cabelo castanho arroxeado, enquanto o outro tinha um cabelo ruivo-alaranjado.
Eu sorri, satisfeita com a aproximação e com a aparente empolgação dele.
— Isso mesmo. Somos o time da atlética Dragões. Fico feliz em dizer, sem falsa modéstia, que somos o time de cheer mais bem-sucedido do campus. Talvez, da universidade. E também somos o mais divertido.
— Que ótimo! A gente poderia fazer um teste?
— Claro! — eu disse, mas, logo, Jae pigarreou. — Ah, eu esqueci. Nós só temos uma vaga masculina no momento, então vocês teriam que disputar essa vaga.
Dei um sorriso constrangido pela situação.
Os dois se entreolharam.
— Ah, vai você — disse o ruivo. — Você quer mais do que eu.
— Tem certeza?
— Claro! Pode ir.
O de cabelo roxo olhou para a frente, inspirando.
— Ok, então vou fazer o teste.
— Qual é o seu nome?
— Jihyung.
— Me fala o que você sabe fazer de acrobacia — eu disse.
Ele deu de ombros.
— Acho que todas as básicas. Estrelinha, rolamento, ponte, vela… Eu também consigo pular bem alto.
— Isso é bom. Você acha que conseguiria ser base lateral?
— Eu me considero bem forte.
— Vamos fazer um teste — eu disse, saindo do estande. — Jae, me levanta com ele.
— Pra já.
Jae também veio para a frente e passou as instruções do stunt para Jihyung. Eles treinaram um pouco sem mim e depois eu subi. Dizem que eu sou uma ótima flyer de teste, porque sou bem leve e equilibrada. Até mesmo para iniciantes, é difícil dar errado.
Apoiei as mãos nos ombros deles e subi, colocando o pé direito nas mãos de Jae e o esquerdo nas mãos de Jihyung. Jae fez a contagem e eles me levantaram. Fiz um V alto com um sorrisão de cheer. Eles me desceram.
— Agora só com a direita — eu disse.
Jae refez a contagem. Eu subi e segurei a perna esquerda esticada. Depois, me desceram. Saímos da formação.
— O que me diz, Jae?
— É, ele foi muito bem. É realmente forte e consegue controlar.
— Então, agora só falta a dança. Eu vou te passar um trecho da nossa última rotina.
Me posicionei ao lado de Jihyung e fui mostrando os passos, fazendo a contagem. Depois de passar algumas vezes, pedi para Michung dar play no nosso cheermix. O garoto cometeu alguns erros sutis, mas foi muito bem para uma primeira vez.
— Gostei, hein! Você está dentro, Jihyung! Treinamos todas as terças, quintas e domingos na mesma quadra onde vocês foram recepcionados. O horário é sempre às 18h30. Pode passar na sala da Dragões para informar seu tamanho que em breve você vai receber os uniformes.
— Ok, muito obrigado! Até amanhã!
Os dois saíram correndo.
Ao passar do dia, o volume de pessoas circulando na feira aumentou. Continuamos captando meninas para o nosso time, e também apresentamos uma rotina simples algumas vezes. Também aconteceram trocas de turno com outros atletas do nosso time (pois é, caso não tenha ficado claro, esse pessoal é apenas uma parte do time).
Eu considerei que foi um ótimo primeiro dia de aula.
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