EP.4. SUBSTITUIÇÃO
- Jéssica Sanz
- 20 de jan.
- 16 min de leitura
FELIPE
12h20
quarta
Eu passei a manhã inteira distraído com o que tinha acontecido na noite anterior. Eu não deveria, e tentei me consertar, mas controlar as emoções estava longe de ser o meu forte. A fila do almoço foi mais uma oportunidade de ficar com a mente vazia e dar margem para lembrar do que tinha acontecido. Sendo mais específico, lembrar do repentino e perfeito beijo.
Peguei minha comida e me virei para procurar um lugar entre as mesas. Quase derrubei a bandeja quando a vi, me encarando com um sorriso contido. Era a primeira vez que nos encontrávamos naquele dia.
Tentei conter os ânimos e fui até ela.
— Posso? — perguntei, antes de me sentar.
— Vou adorar ter a sua companhia — disse ela, com aquela voz tão doce, e eu me sentei ao lado dela.
Comecei a rir do quanto eu era patético.
— Eu estou tão nervoso — confessei, zombando de mim mesmo. — E eu não tenho motivo para ficar nervoso, já combinamos que vamos devagar, então… Sem motivo.
— Eu tenho minhas dúvidas de que eu vou fazer bem a você — disse ela, um pouco preocupada.
No mesmo instante, eu a encarei, sentindo um pouco de pânico.
— Para com isso — eu pedi. — Eu nunca me senti tão bem em toda a minha vida.
Ela ensaiou um sorriso.
— Sério?
— Sério — confirmei. — Tudo bem que eu desmaiei depois, mas…
— Você DESMAIOU? — perguntou ela, em choque.
Eu duvidei se deveria mesmo ter contado, mas não queria esconder nada dela.
— Só por alguns minutos — expliquei — Quando você foi embora, eu e Vermelho entramos em um tipo de curto-circuito, alternando muito rápido o comando, até que isso gerou uma sobrecarga e nós apagamos.
Maya ficou apenas me encarando por alguns segundos.
— Que cuidados eu tenho que tomar pra isso não acontecer de novo?
— Não me pegue de surpresa — eu disse, e abri um sorriso irônico.
— Tudo bem — disse ela, rindo. — O próximo beijo vai vir de você, então. Assim você vai ter o controle.
— Boa ideia — admiti, e me voltei para o almoço, um pouco encabulado.
Agora, eu me sentia com mais uma responsabilidade. Eu não sentia que aquele era o momento, mas não queria que demorasse muito.
SUNNY
18h13
quarta
Como de costume, eu cheguei ao CT esbaforida sem nenhum motivo aparente. Ainda estava em tempo, e estava pronta, com meu uniforme de treinamento, mas não queria me atrasar de jeito nenhum.
O treino do time de cheerleading acontecia em uma sala específica do ginásio, com um tatame bem grande. Ainda faltavam dois minutos para o início oficial do treino, mas boa parte do pessoal já tinha chegado; estavam conversando de pé ou sentados no chão.
— Que bom que chegou — disse Jae, se aproximando de mim, um pouco preocupado. — Eu preciso falar com você.
Imediatamente reduzi o meu passo, com uma expressão desconfiada. Aquele tom não era bom.
— Ih, o que foi? Algum problema?
— Mais ou menos. Hoje tivemos o primeiro treino lá no basquete e, como o nosso capitão se formou no último semestre, ficou para hoje a seleção do novo capitão e…
Ele abriu os braços e deu um sorriso não tão sincero. Eu, pelo contrário, abri um sorriso enorme.
— Jae, isso é maravilhoso! Você merece muito, é claramente o melhor jogador daquele time. Na verdade o melhor do campus, mas isso não vem ao caso… Por que isso seria um problema?
— Então… — ele coçou atrás da cabeça. — Eu vou sair do cheer.
Meu sorriso desmoronou em menos de segundo.
— Você o quê? — eu estava abismada. — Por quê? Não tem nenhuma regra dizendo que capitães não podem estar em outros times.
— Nenhuma regra oficial, mas… você é capitã. Você sabe como é. Somos responsáveis pelos treinos, fazemos reuniões com a atlética, corremos atrás de campeonato, cuidamos de algumas burocracias. É muita coisa, e outras atividades podem ficar em segundo plano. Sem falar na faculdade, que também tem treinos extras.
Eu olhei para o lado, sem conseguir processar aquela informação. É claro que ele tinha sua razão em estar preocupado, mas eu não conseguia me imaginar sendo capitã sem ter o meu namorado para me apoiar.
— Sun, se eu tiver muitas responsabilidades, alguma delas vai se prejudicar. Se eu continuar no cheer, eu vou acabar não me dedicando, faltando treinos, prejudicando o time e… eu não quero isso.
Eu voltei a encará-lo. Meus olhos estavam brilhando, mas não a ponto de chorar. Eu só estava emotiva.
— O que eu vou fazer sem seus flic-flacs?
Ele deu um riso soprado.
— É sério que é essa sua preocupação? Tem muita gente talentosa aqui.
— Você percebe como eu dependo de você para tomar uma decisão?
Ele sorriu.
— Você não depende, Sunny. Você sempre tomou as melhores decisões, e eu só concordei com elas. Você acha que precisa do meu ok, mas você consegue sobreviver sem ele. Tem as meninas. E também… Eu ainda sou o seu namorado, você pode continuar contando comigo, sabia?
Eu sorri, embora estivesse triste. Ele me conhecia muito bem. Era um dos melhores atletas do campus, uma vantagem enorme para nosso time… mas o que me deixava mais triste era o apoio emocional que ele me dava. Ser capitã e filha da diretora não era fácil. Eu tinha funções demais acumuladas, e estar com ele me ajudava a lidar com isso.
— Eu vou ficar até conseguir outra pessoa. Sabe o que tem que fazer.
Eu suspirei e assenti.
— Abrir audições.
Meu olhar periférico me fez sentir que eu estava sendo observada. Olhei na direção suspeita e vi Jihyung, que deu meia volta quando foi notado. O garoto era um pouco tímido, mas era muito esperto.
— Gente, vamos começar — eu disse para o grupo. — Para o aquecimento, cinco voltas ao redor do tatame.
Os atletas foram para as bordas e começaram a correr, criando um circuito entre o tatame e as paredes. Jae deu um último sorriso de confiança para mim e se juntou ao grupo.
Depois do aquecimento, todos se juntaram no meio de novo.
— Minji, puxa o alongamento pra mim, por favor.
Ela assentiu e se virou para o pessoal.
— Gente, vamos fazer uma roda. É só me imitar, mas vou dar instruções para os calouros.
Minji deu os comandos, explicando pacientemente cada parte do alongamento, fazendo movimentos sequenciais. Eu participei, e alongamos da cabeça aos pés, mas minha cabeça permaneceu nas nuvens.
Realmente, não era o fim do mundo. Eu já tinha perdido atletas antes, alguns bem talentosos, mas nunca foi como daquela vez. Era realmente um apego emocional, o tipo de coisa que eu não poderia me dar ao luxo de sentir.
Estava me sentindo desnorteada. Gostava tanto de puxar o alongamento, mesmo revezando com outras pessoas de confiança. E era o primeiro dia, era hora de instruir os novatos, coisa que eu adorava, e eu estava deixando de fazer isso.
Várias vezes, me peguei olhando para Jae, que seguia o alongamento como um treino normal. Ele não olhou muito para mim, provavelmente também pensativo, mas talvez querendo me evitar para tornar o desligamento mais natural.
— É isso — disse Minji, encerrando o alongamento.
— Ok, pessoal — eu disse, para iniciar o treino. — Temos alguns rostos novos aqui, então, dou as boas-vindas ao calouros. Por isso, não vamos começar a pegar a nova rotina ainda; em vez disso, vamos treinar algumas acrobacias, começando com estrelinhas. Podem usar todo o espaço da quadra e treinar estrelas frontais e laterais. Quem souber com uma mão só, pode também. E quem souber flic-flacs — essa última parte eu disse um pouco mais baixo.
O grupo se dispersou um pouco e começaram a treinar as estrelinhas. Algumas das meninas mais velhas fizeram sequências de estrelas, como já estavam acostumadas. Depois de algumas estrelinhas, apareceu um flic-flac, feito pelo único que o sabia. Jae fez três flic-flacs em sequência e parou perto de mim.
— Eu disse — falei a ele. — Só você sabe fazer isso.
— Não se preocupa, Sunny. Eu não sou insubstituível. Você vai encontrar outra pessoa.
— Licença — ouvimos um anúncio alto vindo do portão da quadra, que ficava aberto. Eu e Jae estávamos próximos dele, e obviamente olhamos. Ali estava o menino ruivo, com regata, bermuda e tênis, pronto para começar. — Vocês vão abrir audições?
Na mesma hora, meu olhar se direcionou para Jihyung, que colocou um pé para trás e baixou a cabeça.
Eu não estava brava, apenas surpresa. Eu imaginei que ele convidaria o roommate, já que ele tinha se interessado no dia anterior… mas chamá-lo para aquele treino foi um tanto… desesperado?
— É, na verdade está abrindo uma vaga masculina — informei ao calouro. — Qual é o seu nome?
— Taesung. Me chamam de Tae.
Assenti. Ainda tinham um apelido parecido.
— Ok. Pode dar duas voltas para aquecer. Se você for bem hoje, pode ficar no time.
Ele sorriu e começou a correr.
— É… — murmurou Jae. — Até que foi bem rápido.
— Jihyung deve ter chamado ele.
— Já posso parar de treinar? — perguntou ele, e eu o encarei, um pouco brava.
— Pode fazer uma pausa. Vamos ver como ele se sai antes de tomar decisões.
Jae sorriu.
— Eu disse. Você toma as decisões.
Jae ficou do meu lado observando o treino. Fiquei olhando Jihyung, que era bom em estrelinhas. Ele sabia fazer com uma mão só, o que já era um ganho.
Taesung retornou da corrida, fazendo alguns alongamentos de braço por conta própria.
— E agora? — perguntou ele.
— Pode se juntar aos outros. Estamos treinando estrelinhas e flic-flacs.
— Beleza — ele se afastou.
Fiquei observando os outros, com ênfase no recém-chegado. Ele fez três estrelinhas perfeitas, sendo uma delas sem as mãos. Isso foi suficiente para me fazer erguer as sobrancelhas. Logo depois, ele fez os mesmos três movimentos em sequência, sem pausas.
Eu e Jae nos entreolhamos.
— Ele parece ser bom — disse ele, em voz baixa.
Taesung foi para uma das pontas do tatame e se preparou com as mãos para o alto, o que já nos chamou a atenção. Então, ele iniciou sua sequência. Rondada, três flic-flacs e uma cambalhota, fazendo a finalização com os braços para cima.
Não teve como ficar com queixo caído. A sequência atraiu a atenção de todos os demais atletas, que emitiram sons de surpresa e alguns comentários.
— Você é um ginasta — eu disse, embasbacada.
— Você reparou? — perguntou ele, divertido, e deu uma risadinha.
— Posso ir embora agora? — murmurou Jae.
Taesung fez uma nova sequência: rondada, flic-flac e um mortal. Na finalização perfeita, foi chamado a atenção por Yumi.
— Sorriso!
Com isso, assumiu um sorriso enorme e bem falso, como o que a gente sempre fazia. E todos riram, especialmente os veteranos.
— Eu vou embora — disse Jae, dando as costas.
Ele foi para a porta da sala.
— Ei, espera — eu disse, com cuidado. — Não precisa ficar chateado. Foi você quem quis sair, não foi?
— Exatamente. Eu não tô chateado.
— Então por que parece chateado?
Ele me encarou por alguns segundos.
— Ele é impressionante. Vão se dar bem sem mim.
Ele deixou a sala.
Não aleatoriamente, Michung me chamou para voltar.
— Capitã! Você viu isso aqui?
Eu voltei para perto do time, que ainda seguia paralizado com o efeito-Taesung. Ele estava olhando para mim, esperando uma avaliação, mas os demais ainda estavam comentando.
— Cara, eu não sabia que você fazia essas coisas — disse Jihyung, chocado.
— Olha, — eu disse — você foi bem, mas podia dividir um pouco do seu talento com o time? Porque você claramente tem sobrando.
Todo mundo riu, inclusive ele.
— Minha família tem história na ginástica. Eu treino desde pequeno pra fazer esse tipo de coisa… mas é claro que eu posso ensinar alguns truques pra vocês.
— Claro, me ensina essa parada que você fez nos começos.
— Tá bem, você aprende rápido, que eu sei — disse Taesung, se preparando. — Mas o melhor é praticarmos alguns exercícios de forma constante para preparar nosso corpo para cada acrobacia. — Ele olhou para mim. — Quer dizer, se isso não for atrapalhar o treino.
— Não, eu acho que vai ser muito proveitoso para todos nós. Só lembre que temos que treinar outras coisas também.
— Claro, não se preocupe. Eu não vou demorar.
Eu sorri, assistindo o novato ensinar aos demais. Era incrível que ele tivesse surgido do nada, e que fosse tão perfeito para nosso time.
JAE
12h40
quinta
Eu estava almoçando no refeitório, quando notei a mancha roxa na fila. O time de cheerleading, ou seja, o meu antigo time, estava reunido para um almoço em conjunto. Quase todos estavam usando as jaquetas universitárias da Dragões, ficando as exceções a encargo de camisetas da atlética. Até mesmo o ruivo Taesung estava entre eles.
“Entre eles” era, aliás, uma boa maneira de descrever. Os cheerleaders estavam em torno de Taesung como insetos atraídos pela luz, olhando para ele, ouvindo e rindo. Que tanta graça ele tinha?
— É — disse Ana Laura, sentando ao meu lado. — Parece que o cheer tem um novo galã.
— Nem me fale — eu disse. — Eu não me orgulho muito disso, mas… preciso admitir que estou odiando ver aquele cara no meu lugar.
— Bom, ao menos você ainda é o galã do time de basquete, e eu duvido que alguém tire esse posto.
— Obrigado. Mas eu só consigo pensar no tanto de trabalho que eu vou ter a partir de agora.
— Ei, ser capitão não é tão difícil assim — garantiu ela, com tom motivador. Ana Laura era capitã do time de vôlei, então tinha experiência para me aconselhar. — Você dá conta, já fez coisas muito mais difíceis.
Assenti, tentando focar mais na minha comida.
SUNNY
17h50
quinta
Passei apressada pela varanda que dava acesso ao CT. Estava junto com outros colegas do time, que eu tinha encontrado pelo caminho e estava, só esperando o treino começar.
De repente, uma caloura gritou, nos assustando.
— O que foi? — perguntei, apavorada.
Ela apontou para o canteiro que ficava de frente para a varanda, onde havia um lobo tão preto como a noite, com olhos brilhantes. Ele estava sentado no jardim como um cachorro esperando o dono.
— Aquilo é um lobo? — Jihyung perguntou.
— É só um veterano querendo assustar vocês — garanti, empurrando levemente o grupo para continuar andando, enquanto ainda vigiava a criatura.
Quando estávamos quase chegando ao CT, ouvimos o barulho atrás de nós. Os calouros começaram a gritar e correr quando viram que o lobo estava nos seguindo. Eu não tive nem tempo de falar nada.
Me virei para o lobo, um pouco brava.
— O que você acha que tá fazendo? — perguntei.
O lobo assumiu a forma humana.
— Eu preciso falar com você — disse Jae.
— E o que isso tem a ver com assustar meus calouros?
— Nada. Eu esperava que você viesse até mim quando me visse. Não queria falar com você com os outros por perto. É importante.
Franzi os lábios. Eu não estava gostando nada daquele comportamento.
Olhei por cima do ombro dele, vendo outros cheerleaders no caminho para o CT.
— Vem, vamos ali.
Nos afastamos para a lateral do prédio, onde eu esperava que ninguém fosse nos incomodar.
— Fala logo — eu disse.
— Eu descobri uma coisa sobre o Taesung, e achei que você deveria saber. Você por acaso sabe qual é o poder dele?
Virei um pouco a cabeça.
— Qual é? — perguntei, erguendo as sobrancelhas, já esperando pelo que viria.
— Ele é um hipnotizador! Por isso tá encantando todo mundo.
— É sério? — perguntei incrédula. — Você acha que ele tá hipnotizando as pessoas de propósito, é isso?
— Sei lá se é de propósito, mas eu vi hoje no refeitório. Todo mundo só tinha olhos pra ele. É claro que ele tá influenciando vocês para que se apeguem ou algo do tipo.
Eu o encarei por alguns segundos.
— Deixa eu ver se eu entendi — eu disse. — Você não falou comigo o dia todo, e agora me segue como lobo pra me dizer que o calouro que te substituiu conseguiu esse lugar não com talento, mas porque tá enfeitiçando as pessoas? Você acha que aquelas acrobacias não eram reais? Que ele inventou a história da família ginasta?
Ele abriu os braços, como se fosse óbvio.
— Por que isso seria impossível?
— Então por que ele contaria pra gente o poder dele?
Jae inspirou um pouco pela boca, como se buscasse as palavras.
— Ah, ele contou?
— Contou. Ele também explicou um pouco como funciona. Ah, ele também mostrou vários e vários registros da família, e dele pequeno treinando. — Jae abriu a boca para falar, mas eu o interrompi. — Se você me disser que ele também inventou isso, eu juro que vou surtar. Por que ele se daria ao trabalho? Só porque ele quer destruir você como um vilãozinho de high school? Acorda, Jae. O mundo não gira em torno de você.
— Definitivamente não — ele disse, em voz baixa. — Eu presumo, então, que não devo dar créditos ao Taesung por você não ter me mandado uma mensagem sequer o dia todo. Eu só ouvi sua acusação, mas você não me procurou, também.
— Você ficou tão chateado ontem que eu decidi esperar você se pronunciar na hora certa. Não disse que eu sempre tomo as melhores decisões?
Ele se calou e assentiu.
— Sua decisão foi jogar a responsabilidade em mim. Que legal.
— Sua decisão foi me procurar só quando tinha algo de podre pra dizer.
— Eu tô tentando te alertar.
— Eu não preciso que você me vigie e cuide de mim como se eu fosse um bebê.
Ele deu uma risadinha irônica.
— E ontem estava implorando para eu não te deixar. Acho que você aprendeu a se virar sozinha bem rápido.
Meus olhos estavam cheios de água. Eu estava odiando aquela conversa. Estava odiando aquele novo Jae, obcecado.
— Talvez seja melhor assim — eu disse, secamente.
— Assim como?
— Se eu ficar sozinha — eu disse, com mais firmeza. — Tá muito claro que você não consegue lidar com essa nova situação, então é melhor parar por aqui. Eu não tenho tempo pra lidar com esse tipo de drama, e você também não tem tempo sobrando agora.
A expressão de Jae mudou para algo quase desesperado.
— Não faz isso — disse ele. Seu tom não era triste, era quase como um conselho. — Você tá nervosa agora, mas isso é só um momento. Não precisa jogar tudo fora por um momento.
— Essa é a minha decisão — enfatizei a última palavra.
— Uma do tipo que você não pode voltar atrás — disse ele, em voz baixa. — Reatar pode parecer fácil pra você, mas eu não sou um brinquedo.
— E eu não sou criança. Para de me tratar como se eu fosse uma. Tá decidido.
Eu saí de perto dele quando ainda pronunciava as últimas palavras. Fui andando com passos firmes para o CT, sem olhar para trás.
Fiz o curto caminho que faltava até a sala. Quando fechei a porta, pude ouvir os uivos ao longe.
— Tudo bem com você? — perguntou a voz conhecida, e me virei para encará-lo, me forçando a abrir um sorriso.
— Tudo certo, Taesung. Vocês podem começar a aquecer.
A maioria dos atletas começou a dar as voltas no tatame, mas Taesung permaneceu me observando. Acho que minha tentativa de passar confiança falhou.
— Olha, — disse ele — se você precisa conversar sobre alguma coisa, pode contar comigo, ok?
Me permiti um sorriso.
— Não se preocupe comigo. Concentre-se no treinamento.
Ele sorriu.
— Se isso te ajudar a ficar bem, eu dou mil voltas nesse tatame — disse ele, enquanto começava a correr.
Eu franzi o cenho e ri um pouco. Era estranho que ele se preocupasse tanto, e também comovente. Enquanto Jae só tentava lançar pedras, Tae se mostrava uma pessoa cada vez melhor, sem muito esforço.
MAYA
18h05
quinta
Quando deu 18h, a maioria dos jardineiros já tinha ido embora, e os poucos que ficaram começaram a arrumar as coisas. O esvaziamento da estufa me alertou para meu atraso.
— Eu preciso ir — eu comentei. — Tenho treino.
— Hoje eu também tenho — confessou Felipe.
— Que pena. Eu queria ver você jogar.
— Você ainda terá oportunidades — garantiu ele, com um sorriso convencido.
Eu dei uma risadinha.
Coloquei os vasos em que eu estivera trabalhando no lugar.
— Tô indo. Até amanhã — eu disse, dando a volta nele.
— Espera aí — pediu ele.
Parei e me virei para ele, que estava terminando de podar uma plantinha. Ele deixou a tesoura na bancada e se virou na minha direção.
— Tem um tempo pra mim?
Eu não sei se o tom dele foi propositalmente tão cheio de segundas intenções, ou se eu que estava intensificando demais minhas emoções, mas, de repente, eu entendi por que o nervosismo era consequência da surpresa.
Eu soltei um suspiro de incredulidade e me obriguei a me recuperar do meu breve desequilíbrio emocional.
— Eu posso parar meu tempo pra você — eu disse.
Felipe deu um sorriso bobo e se aproximou com cuidado. Eu deixei ele chegar. Fechei meus olhos só quando nossos lábios estavam a ponto de se tocar.
Nos beijamos primeiro, e depois começamos a nos aproximar. Depois de alguns poucos segundos, ele apoiou as mãos na minha cintura. Passei meus braços ao redor do pescoço dele, sem encostá-lo com as luvas sujas de terra.
O beijo foi um pouco mais intenso que o primeiro, mas sem nenhuma pressa ou desespero. Quase um beijo normal entre dois jovens universitários. Meu corpo todo estava arrepiado, meu coração acelerado, um frio na barriga do tipo bom. Eu queria mais e mais dele.
Dividi meu foco para tirar as luvas enquanto o beijava, e joguei-as de qualquer jeito no balcão. Logo em seguida, segurei a nuca dele, afundando a mão em seus cabelos. Senti a respiração dele falhar.
Me afastei um pouquinho.
— Desculpa — sussurrei.
Ele soltou um risinho soprado.
— Esse é meu ponto fraco — confessou ele, também baixinho.
— Tá bem — eu disse, com o tom mais tranquilo que pude, e arrisquei voltar a beijá-lo.
Recuei minhas mãos para passá-las por baixo dos braços dele, para ter acesso às costas. Um ponto de apoio mais seguro, que ele pareceu aprovar. Seguimos com tranquilidade.
Depois de alguns minutos, ele disse, entre os beijos.
— A hora… — e voltou a me beijar.
— Me obriga a ir embora — eu disse, antes de mais um beijo. Ele me segurou mais forte, como se isso não fosse uma opção pra ele.
O beijo se prolongou um pouco, até que, na próxima pausa, quando já voltava a me beijar, ele se afastou repentinamente.
— Desculpa! Desculpa. Ok? Desculpa!
O tom alto e bruto era bem claro. Eu nem precisei checar os olhos enquanto ele se afastava.
— O que você tá fazendo? — eu perguntei, ainda tentando recuperar o fôlego.
— Olha, longe de mim querer bancar o chato, mas os dois têm treino! É compromisso! E eu pretendo me tornar um astro do basquete um dia, se esse querido parar de me atrapalhar.
Eu ponderei. Astro do basquete eu achava forçado, mas ele não estava errado. Precisávamos treinar e, se ninguém me interrompesse, eu duvido que eu sairia dali tão cedo. No entanto, eu não tinha como me sentir grata.
— Sai daqui antes que eu te dê outro tapa — eu ameacei. Na verdade, eu ainda não estava no ponto da irritação, e não queria chegar lá. Preferia me manter plena e nas nuvens.
— Tá bom, madame, você quem manda — disse ele, se afastando. Por fim, se virou — Até amanhã, docinho de coco!
Revirei os olhos. Vermelho era um idiota, mas eu me obriguei a esquecê-lo e voltar minha mente para os mais maravilhosos minutos do dia. Fiquei sorrindo como boba enquanto terminava de guardar as coisas para correr para o treino.
JAE
18h24
quinta
Encontrei Felipe no caminho para a quadra, enquanto ainda tentava me recompor.
— Também atrasado? — perguntou ele.
— Problemas. E você?
— O frouxo tá de namoradinha nova.
— Ah. Vermelho. Eu achei que fosse Felipe. Bom pra ele, porque meu namoro acabou de acabar.
— Sério? Que droga, mano. Ai ai, essas mulheres…
Eu encarei ele. Não deveria estar surpreso com aquele tipo de comentário. Já estava acostumado com ambas as personalidades.
— Os uivos que eu ouvi eram você, então? — perguntou ele, quando entrávamos na quadra.
— É. Eu prefiro chorar como lobo, porque não gera lágrimas, nem rosto vermelho, nem constrangimento.
— Eu ofereceria um ombro amigo, mas não sou muito bom nisso.
— Na verdade, você é. Eu preciso de um pouco desse seu olhar prático. Focar no que eu tenho que fazer.
— Beleza, cara. Se o Felipe não roubar o corpo, a gente sai pra tomar umas mais tarde.
Consegui dar uma risada daquele jeitão dele.
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