EP. 19 ALINHAMENTO
- Jéssica Sanz
- 5 de jan.
- 24 min de leitura
SUNNY
7h32
quarta
Era o dia do meu noivado.
Eu não estava nada animada. Na verdade, estava torcendo para não ver Jae até a hora da festa, mas Taesung também não estava respondendo minhas mensagens. Olhei para o lado. Ao menos, Guilherme era da minha sala, e eu não me sentia tão sozinha.
— Educadamente interrompemos todas as atividades para pronunciamento oficial da diretora Hyeri Choi — disse a voz do supervisor Kim, na televisão.
— Ih, todo dia é isso, agora — reclamou Valentina.
Dessa vez, não foi minha mãe quem apareceu, mesmo tendo sido anunciada.
— Olá, alunos! — disse meu pai. — Desculpem, eu não sou a diretora Choi, mas, por algum motivo, o senhor Kim ainda não teve a decência de gravar a chamada para pronunciamento oficial do reitor. Não se preocupem, vai ser rápido. Eu preciso que os seguintes alunos me encontrem na sala de dança 4, no bloco de Música: Sunghee Hae, Youngjae Min, Guilherme Vilela, Eduarda Machado, Maya Fujita, Felipe Rider e Vermelho Rider.
Eu e Guilherme nos entreolhamos. Por mais surpreendente que fosse aquele chamado, algo era mais surpreendente ainda.
— Ele considerou o Vermelho — sussurrou Guilherme.
— O restante pode continuar em aula. É só isso, obrigado!
A televisão se desligou.
Ainda confusa, me levantei devagar. Todos ficaram nos olhando enquanto eu e Guilherme saíamos da sala. Logo em seguida, iniciamos o caminho para o bloco de Música.
— Que ótimo — murmurei. — Achei que conseguiria ficar sem ver Jae até a festa.
— E por que você iria querer isso? — perguntou Guilherme. — Achei que iria querer se resolver antes.
— Não tem nada pra resolver — eu disse. — E não sei se consigo encarar Jae agora.
— Bom, você vai ter que fazer isso.
Ainda no caminho, esbarramos com algumas pessoas. Maya e Duda nos encontraram, vindas do bloco de diplomacia.
— Oi, garotas! — eu disse, animada. Novamente, esqueci do climão que ainda estava entre Duda e Guilherme.
— Tem ideia do que seu pai quer? — perguntou Maya.
— Deve ser sobre a festa — eu disse entediada.
Chegamos à sala, e notamos que Felipe e Jae já estavam lá.
De repente, pareceu óbvio o motivo da escolha da sala. Graças à grande parede de espelho, Vermelho e Felipe estavam presentes de forma praticamente igual.
— O reitor ainda não chegou? — perguntou Duda.
— Ele deve querer fazer uma entrada dramática — eu disse.
Assim que eu disse isso, a porta da sala se abriu novamente, e meu pai entrou, usando seu mesmo traje de sempre, com o sobretudo roxo e a echarpe de fantasmas. Ele não estava com uma cara muito boa.
— Oi, crianças — foi o que ele disse, enquanto fechava a porta.
— Aconteceu alguma coisa, seonsaengnim? — perguntou Jae. Uau, como estava prestativo, de repente.
De forma natural, fomos nos moldando para ficar de um lado da sala, e meu pai do outro, com Felipe ficando bem próximo ao espelho.
— Sim, aconteceu — admitiu ele. — Não tem uma forma fácil de falar, mas eu vou tentar. Tudo o que vocês têm vivido esse semestre passou por uma leve… distorção.
— Tá falando sobre eu estar noiva sem saber, ou é outra coisa? — perguntei, um pouco afiada.
Meu pai deu um suspiro cansado, que quase o fez aparentar ter a idade que tinha.
— Sunny, vamos nos ater ao caso, ok? O assunto é muito sério.
Ele dirigiu seu olhar a Felipe e Vermelho, que permaneciam lado a lado, imagem real e reflexo, usando a exata mesma aparência e roupas, a não ser pela cor dos olhos.
— Tem a ver com vocês dois.
Todos olharam para eles, e os dois se entreolharam. Ajustamos nossas posições para que todos nós conseguíssemos observá-los.
— Vamos revisar o que sabemos da história dos Rider — disse meu pai. — Felipe Rider nasceu, uma criança miraiana comum, até despontar, com poucos anos, sua segunda face. Ao que parecia, era um poder extra. Ele foi chamado de Vermelho, e os dois passaram a brigar pelo controle do corpo. Nesse meio tempo, aconteceu o acidente que deu fim à vida da pequena Amanda, irmã deles. Vermelho estava no controle, na ocasião. O fato é que esta segunda personalidade sempre se mostrou mais irritadiça, egoísta e sem educação.
— Uau, muito obrigado, senhor — disse Vermelho, um pouco irônico.
— Mas você tem melhorado muito nesse semestre, não é? O que me diz, Felipe? Acha que Vermelho está diferente?
— Hum… Agora que o senhor falou… Eu já tinha percebido que ele está melhor, é claro. Eu o considero meu amigo, agora. Só não tinha reparado que toda a mudança aconteceu nesse semestre.
— Pois é. Ninguém percebeu — disse meu pai. — No entanto, chamo a atenção para este fato, porque essa transformação brusca faz muito sentido.
— Não acho que tenha sido tão brusca — comentou Duda. — Pelo que conheci do Vermelho no começo do semestre, ela foi bastante gradual.
— Você está certa — disse meu pai. — E eu também tenho explicação pra isso, mas vamos com calma.
— Eu tô ficando nervoso — admitiu Vermelho. — O senhor pode dizer logo?
Meu pai o encarou por dois segundos, assimilando aquele pedido.
— Claro, sem mais rodeios. Mesmo que eu tentasse, não tem um jeito mais fácil de dizer isso — disse ele. — Você não é o Vermelho.
Todo mundo na sala franziu o cenho. Meu pai observou atentamente nossas reações, e continuou a nos contar. Eu estava longe de entender o que aquilo queria dizer.
— De forma mais clara, no começo do semestre, sua alma foi trocada de lugar. Mesmo sendo o deus da morte, eu não estava aqui nessa época, então não consegui notar. Desde aquele momento, você ocupa o lugar do Vermelho por ele, mas não é ele. Ele manipulou suas memórias, para que você se lembrasse da vida que ele viveu até então. Inclusive, manipulou as memórias sobre a Amanda. O verdadeiro Vermelho a matou intencionalmente, mas fez você pensar que foi um acidente. Ele também manipulou sua personalidade, deixando-a mais parecida com a dele, mas isso aos poucos se dissolveu. Por isso, você passou por essa mudança gradual de humor.
Meu pai fez uma pausa, para que conseguíssemos assimilar aquele trecho.
Então, o cara com quem estávamos interagindo desde o início do semestre não era o mesmo que conhecíamos do semestre passado. Não consegui parar de pensar naquilo que Vermelho fez, me chamando para dançar na festa do campeonato. Era inegável que ele estava mais tranquilo, benevolente, paciente, aberto a diálogos e negociações.
Observei com mais cuidado as reações confusas e surpresas de pessoas que tinham interagido com ele: Maya e Felipe, que passaram por problemas de relacionamento por causa da administração do corpo; Jae, que tinha Vermelho como companheiro de time e tinha se aproximado dele nos últimos meses; e Duda, que foi praticamente uma defensora de Vermelho, deixando as coisas mais justas para ele, inclusive na Festa de Junho, onde performaram juntos.
— Então, eu… Não sou quem eu sou? — perguntou Vermelho (ou quem quer que fosse), abismado. — E quem eu sou de verdade?
— E onde está o verdadeiro Vermelho? — perguntou Felipe. — Se ele ainda é o mesmo cara de antes, deve estar fazendo um monte de merda por aí. Desculpe o palavreado, senhor reitor.
— A resposta para essas duas perguntas é a mesma — disse meu pai. — Como eu disse, foram trocados, então o Vermelho passou o semestre no corpo de outra pessoa. O seu corpo — disse ele, dirigindo-se ao “Vermelho”. As sobrancelhas dele se ergueram um pouco; ele parecia comovido com aquele simples fato: ele tinha um corpo, um que pertencia integralmente a ele. — Apesar disso, não há mais motivo para preocupação. O Lorde Vermelho, como se anuncia, me ameaçou, e eu achei melhor cortar o mal pela raiz. Mandei aquela alma maligna para o mundo dos mortos, onde posso controlá-la. E só ficou a casca, que eu fiz questão de guardar, e vou mostrar para vocês agora. Estão prontos?
Todos assentiram. Claro, estavam todos curiosos.
Eu deveria ter suposto; especialmente pela ausência dele naquela reunião, mas não tive tempo para isso. Tudo aconteceu muito rápido, e eu estava mais preocupada em entender as explicações do que em supor qualquer coisa.
Meu pai fez uma janela de magia se abrir, revelando um corpo flutuante. Taesung ainda estava com a roupa de treino da noite anterior, com os pés pendurados no ar; o corpo completamente desleixado parecia estar sendo segurado pelos ombros, com todos os membros bem soltos, e a cabeça apoiada no peito. Ainda assim, dava para ver bem a expressão sem vida e os olhos roxos abertos e vidrados.
Todos entraram em estado de choque, fazendo exclamações.
Eu senti que iria desmaiar. Primeiro, pela simples visão de Taesung morto. Depois, percebendo que aquele cara que eu conhecia, aquele cara com quem eu tinha me envolvido, não era um talentoso aluno da faculdade de música, mas um assassino maligno e manipulador. Cobri a boca com as mãos, e senti lágrimas chegarem aos meus olhos. Aquilo era demais para mim.
Eu senti o olhar de Jae sobre mim. Ele deveria estar preocupado comigo, então me obriguei a suportar aquilo de pé, o mais firme que eu podia, sem deixar o choro cair.
Aquele momento deve ter sido breve, mas pareceu durar vários minutos. Notei o olhar de meu pai sobre aquele corpo, provavelmente pensando no momento em que ele precisaram arrancar a vida dele.
Um turbilhão de pensamentos nos percorre rapidamente quando passamos por um momento como esse. Consegui ver os rostos dos demais, com o olhar fixado no corpo flutuante e a expressão tomada de surpresa. Entre eles, Maya parecia mais afetada, já que dividira o palco com ele na Festa de Junho, criando uma relação muito amigável. Lembrei-me das conversas estranhas que tive com ele sobre a hipnose, a qual ele tinha usado para trapacear, a princípio “sem querer”... mas, obviamente, me pareceu bastante conveniente.
— Bom… — disse meu pai, finalmente nos despertando. — Eu quero deixar claro que não sou um maníaco colecionador de corpos. Eu guardei este para devolver ao seu verdadeiro dono.
Meu pai olhou para Vermelho, e todos nós o fizemos.
Céus.
Aquele reflexo era Taesung.
O cara que me chamou para dançar aleatoriamente na festa do campeonato era Taesung. O que ficou olhando com tanto ciúme era o Lorde Vermelho. Aquele que prometeu lutar por mim, me beijou, e disse que eu era sua não era Taesung. Era o Lorde Vermelho.
— O Lorde Vermelho tomou Taesung por diversos motivos — explicou meu pai. — O primeiro foi pelo poder mágico. Ele já é um espírito muito poderoso sozinho; em posse da hipnose que Taesung é capaz de fazer, ele ficou ainda mais perigoso. Usou a hipnose para manipular tudo ao seu redor, começando pela vida amorosa da Sunny.
Baixei um pouco a cabeça, tentando assimilar tudo aquilo, enquanto continuava ouvindo aquela enxurrada de informações.
— Ele impressionou na audição e, depois dela, se transformou no grande astro do time de cheerleading; fez todos ao seu redor se encantarem e o amarem; despertou o ciúme em Jae e a briga no casal. Basicamente, ele causou o término de vocês; depois, fez a Sunny se apaixonar por ele. Ah, claro, esse não foi o único término assinado por ele.
Não pude deixar de olhar para Guilherme e Duda, que se entreolharam brevemente. Voltei a olhar para meu pai.
— Ele manipulou toda a nossa realidade, mas, hoje, o pequeno reinado dele vai chegar ao fim.
Meu pai fez uma pequena pausa antes de dar sequência ao que parecia estar se tornando um ritual.
— Primeiro, eu vou devolver a aparência original da sua alma — disse meu pai a Vermelho.
Ele estendeu a mão e uma brisa soprou até o reflexo. As partículas que cobriam a imagem de Felipe Rider se dissolveram, dando lugar a ele. Taesung Kim, com sua aparência mais pura, coberta por roupas brancas, faces rosadas e seu cabelo castanho, já que o tingimento ruivo era uma mudança de corpo, e não de alma. Ele olhou para si mesmo, observando atentamente suas roupas.
— Agora, suas memórias e sua personalidade. Sua alma original.
Meu pai soprou de novo. O vento balançou os fios castanhos e Taesung fechou os olhos, assimilando. Ele abriu de novo, e sua expressão mudou. Ele parecia muito emotivo, misturando felicidade e alívio. Choramingou um pouco, absorvendo o peso de ser quem era.
— Por fim, Taesung, é chegada a hora. Pode tomar seu corpo de volta.
Meu pai soprou pela terceira e última vez. A alma dele brilhou por um instante, ele olhou para o corpo flutuante, observando sua sina, seu Destino. Quem ele deveria se tornar.
Sem hesitar, sem ser tomado por dúvida se conseguiria fazer o que seria possível, ele começou a caminhar. Sua alma atravessou o espelho, ficando mais brilhante, enquanto ele caminhava reto para o corpo, sem olhar para nós. Foi em passos lentos e, quando o alcançou, eles brilharam muito, e tivemos que fechar os olhos.
Quando a luz se dissipou e pudemos voltar a olhar, Taesung estava encarando suas mãos. Ele estava usando uma roupa branca, um pouco mais detalhada que a da sua alma, e o cabelo continuava ruivo.
Ele ergueu os olhos e foi passeando por cada um de nós. Começou por mim, e pensei que haveria algo de especial, mas não teve nada. Aquele Taesung mal me conhecia.
Ele passou por Jae, que era, como eu já disse, seu colega de equipe; alguém de quem ele se aproximou ultimamente e podia chamar de amigo. Passou por Duda, sua melhor amiga, a pessoa em quem ele mais confiava desde que ela tomou esse lugar; abriu para ela um sorriso sincero de agradecimento. Quando parou em Guilherme, não consegui imaginar nenhum vínculo, a não ser o fato de Taesung ter causado, indiretamente, o beijo em Duda, que culminou no término. O olhar de Taesung pareceu pedir breves desculpas pelo transtorno. Passou, então, por Maya, com quem teve tantos desentendimentos, que pareciam agora ser lavados pela verdade, deixando visível apenas um olhar de cumplicidade.
Depois de passar por todos, ele parou em Felipe, que foi onde ele realmente dispensou toda a sua atenção, ficando emotivo. Felipe também não estava diferente.
— Posso te dar um abraço? — perguntou Taesung, com a voz um pouco embargada.
Felipe abriu um grande sorriso.
— É claro que pode.
Taesung cruzou o caminho de volta e deu um abraço em seu melhor amigo. Obviamente, os dois receberam nossos aplausos. Alguns até choraram um pouquinho. Eu estava abalada demais para dar atenção ao reencontro emocionante, mas me esforcei para tentar ver o quão importante aquilo era. Eles tinham dividido o mesmo corpo durante aquele semestre todo, tinham aprendido a conversar, entender a dor do outro e dividir. Agora, cada um teria seu próprio corpo, sua própria vida, e poderiam continuar compartilhando o melhor daquilo tudo: a amizade e o companheirismo.
— Vai levar um tempo para se adaptarem à nova vida — contou meu pai, chamando nossa atenção novamente. — Mas aposto que vocês se acostumam. Deve haver algumas dúvidas que queiram tirar sobre tudo o que aconteceu, mas vocês se resolvem. Tirando toda essa questão, a única coisa que quero aproveitar para mencionar é que vocês todos receberão hoje mensagens com mais orientações sobre o Baile Mistério. Tirando os noivos, todos aqui serão padrinhos e madrinhas. Afinal, vocês fazem parte da vida de Sunny e Jae e merecem estar lá com destaque. Agora, vou deixar vocês à vontade.
Sem esperar mais, meu pai foi para a porta, mas ainda ouviu.
— Obrigado, senhor — disse Taesung, apressadamente.
Meu pai apenas deu um sorriso sincero, e saiu.
— Agora tudo faz bem mais sentido — comentou Felipe.
— Pra você, eu imagino que sim — disse Taesung. — Eu ainda estou tentando assimilar. Tenho muita coisa pra colocar em dia, preciso falar com muita gente… mas eu acho que nós dois precisamos começar agora a aproveitar os benefícios de ter um corpo exclusivo.
— E resolver as pendências depois — disse Felipe. — Eu topo.
— Ótima ideia — eu disse, indo para a porta. — Preciso correr para ver as coisas do Baile.
Eu tentei soar natural, e espero ter conseguido parecer apenas uma pré-noiva apressada, mas eu estava devidamente tentando fugir dali.
— Até mais tarde, pessoal! — eu disse, sem dar mais brechas antes de sair da sala.
Saí correndo para o banheiro mais próximo.
Entrei no primeiro box vazio.
Coloquei pra fora todo café da manhã.
Talvez um pouco da janta também.
Em um outro momento, talvez eu estivesse apenas fugindo de Jae, fugindo da responsabilidade de ser noiva do meu ex-namorado. No entanto, eu só estava repleta de nojo por tudo o que aconteceu. Especialmente, por tudo o que aconteceu entre mim e o falso Taesung. Fiquei imaginando como poderia ser a aparência daquela alma maligna, e só me vieram as piores coisas. Me imaginei fazendo tudo o que tinha feito com aquele miserável. Eu me transformei em pura repugnância e fiquei segurando a vontade de vomitar por boa parte da conversa.
Dei descarga. Embora fosse efetivamente contra esse comportamento, me sentei no chão do banheiro, e com isso eu quero dizer que eu me deixei cair e chorei. Eu estava sem forças, e precisava pensar sozinha sobre tudo o que aconteceu, enquanto permanecia disponível para jogar mais coisa fora.
A conta da minha pulseira brilhou com as notificações de mensagem de alta prioridade.
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Jae
Você está bem?
Não precisa responder se for um incômodo.
Eu só quero ajudar.
Mas imagino que talvez eu não seja a melhor pessoa no momento.
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Me permiti um suspiro.
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Sunny
Você sempre é a melhor pessoa.
Em parte, você tem razão. Eu estava tentando te evitar por hoje, porque não sei se vou conseguir te encarar na atual circunstância.
Me refiro ao noivado, no caso.
Mas é muita coisa de uma vez só.
Não sei se consigo lidar sozinha.
Também não sei se eu consigo te ver ou ao menos ouvir sua voz.
Mas eu queria muito só te abraçar e chorar por uns minutos.
Jae
Eu vou entrar.
Sunny
Você não pode entrar no banheiro feminino!
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Fiquei esperando uma resposta, mas já era tarde demais.
Ouvi o som familiar das patinhas. Ele farejou até o box onde eu estava e esperou pacientemente do lado de fora, até ter autorização.
— Aqui — eu disse, com a voz ainda chorosa.
Com cuidado, o lobo se esgueirou pelo vão debaixo da porta e se aninhou ao meu lado, colocando o focinho por cima de mim, choramingando. Eu me permiti rir um pouco e acariciei o pelo da cabeça dele. Ele parecia um cachorro em sua forma lupina, e eu sempre o achava muito fofo.
Eu não sei quanto tempo ficamos ali. Ele estava cedendo, pela milésima vez. Da forma mais adorável possível, estava cumprindo meu pedido. Eu não o estava vendo em sua forma original, e não podia ouvi-lo, mas ele estava ali, ao meu lado, sendo o melhor companheiro do mundo. Pela milésima vez.
Eu o amava. Eu sabia disso, não deveria nunca ter me esquecido. Mas, ao que tudo indicava, eu havia sido hipnotizada, manipulada para esquecer Jae e tudo o que ele significava. Eu ainda não me sentia pronta para ser noiva dele, mas me sentia pronta para ter aquele laço forte de volta.
De alguma forma, me senti feliz e ansiosa para o Baile Mistério.
DUDA
10h52
quarta
Depois que o reitor nos liberou, nos dispersamos naturalmente. Até pensei em voltar para a aula, mas, realmente, não tinha cabeça para aquilo.
Aquela virada de chave afetava algumas pessoas mais que outras. A princípio, eu não me sentia parte desse grupo. Fiquei imaginando como estaria Sunny, depois de descobrir que tinha namorado um ser maligno aquele tempo todo. Como estaria Felipe, percebendo que esteve dividindo o corpo com um inocente desconhecido. Ah, e aquela coisa de que o Lorde Vermelho matou a irmã deles de propósito! Que coisa mais repulsiva.
Eu pensei nessas coisas enquanto caminhava pelo campus, pensando se ia para a aula, para meu quarto ou para a sala de e-sports. Não, definitivamente não. Eu estava evitando a sala do time desde o término, por motivos óbvios; ainda assim, não pretendia sair do time. Eu só precisava de um tempo para superar.
Acabei indo para um dos quiosques que ficava no pátio principal do campus. Ali havia mesas e bancos de pedra, sempre com algumas pessoas em grupos. Encontrei um espaço em um dos bancos que tinha espaldar, me permitindo ficar um pouco mais jogada e respirar fundo.
Uma vez que estava à vontade para pensar, a primeira coisa que passou pela minha cabeça foi analisar como aquilo me afetava. Primeiro, o que significava perder aquele falso Taesung? Nada. Eu não tinha nenhuma relação de proximidade com o então namorado de Sunny. Lorde Vermelho não me causou estragos visíveis.
Em segundo, o que significava ganhar o garoto que eu conhecia como Vermelho? Caramba, significava tudo. Era um alívio saber que aquele rapaz que abriu comigo no pique-esconde realmente não era o espírito maligno e possessor. Ele se mostrou tão vulnerável e injustiçado naquele momento, e eu passei a vê-lo com outros olhos. Vermelho era meu amigo. Também era um alívio que ele finalmente tivesse ganhado um corpo, uma existência própria.
Olhei para minha pulseira, me perguntando como ele deveria estar. Sendo visto como um mala pela maioria das pessoas, Vermelho não tinha muitos amigos. Ultimamente, enfatizava como eu era a única pessoa com quem ele podia contar. Imediatamente, imaginei o rebuliço que deveria estar a mente dele com aquelas mudanças.
Mandei uma mensagem. No caso, estranhamente, mandei para a pulseira de Taesung.
Duda: Você está bem? Estou aqui se quiser conversar.
Fechei a tela holográfica da pulseira e olhei para o horizonte, mas ele não demorou a me responder.
Taesung: Acho que estou bem. Eu tenho muitos motivos para ser grato e estar feliz… mas eu vou adorar ter companhia para minhas explosões de cabeça.
Sorri.
Duda: Onde você tá?
Taesung: Vem se esconder comigo.
Um sorriso de cumplicidade apareceu espontaneamente no meu rosto, e eu quase me senti culpada.
Levantei e fui em direção ao bloco onde nos escondemos no pique-esconde. Enquanto ia até lá, olhei para as janelas do último andar, avistando-o debruçado na janela. Taesung, o garoto que nunca foi nada demais, de repente era capaz de me arrancar muitos sorrisos em um curtíssimo intervalo de tempo.
Me adiantei para a rampa e subi os três lances, tentando ser rápida, mas sem correr. Finalmente, entrei no corredor.
Diferente da noite do pique-esconde, o bloco estava um pouco movimentado, com atividades acontecendo nas salas e alguns alunos, a maioria de jaleco, atravessando o corredor. Taesung ainda estava debruçado na janela. Me aproximei cautelosamente. Ele notou minha presença, mas não desviou o olhar do pátio. Continha um sorriso.
Me coloquei ao lado dele, também me apoiando na janela.
— Parece que foi ontem que estávamos aqui, observando o campus por cima… e contando segredos.
Ele deu um risinho leve.
— Parece que eu tô vendo o campus pela primeira vez. Ou, melhor, pela segunda. Sinto que eu só existi quando estava com você.
Felizmente, ele não estava olhando para mim, porque eu ergui um pouco minhas sobrancelhas, bem surpresa com aquilo.
— Você foi a única pessoa que me enxergou, sabe? — continuou ele.
— Ah, não seja injusto com seus outros amigos — eu disse. — Você não se aproximou de Felipe?
— Bom… é. Felipe e Maya aprenderam na marra a me ver como pessoa. Jae sempre foi indiferente, mas eu podia chamá-lo de amigo, ao menos. Mesmo assim, tudo o que foi feito por mim foi sem intenção, ou com intenção de benefício próprio. No começo, Felipe fez de mim um aliado porque ele precisava que eu não atrapalhasse o namoro dos dois. Eles devem estar se pegando muito agora, aliás. O estorvo finalmente foi embora.
— Ei, o que aconteceu com o “só tenho motivos para estar feliz”?
— É verdade — ele respirou fundo e sorriu. — Eu tô livre. Nem acredito.
— E você não deveria estar correndo por aí, explorando o mundo e aproveitando seu novo corpo?
Ele fez uma careta, que parecia dizer “hm, acho que não”.
— Não é tão radical assim. Eu entendo que parece que estou estreando o corpo, mas… ele sempre foi meu. Eu só deixei de ser eu por alguns meses, e… claro que é bastante tempo, mas, na escala da vida, é muito pouco. Além disso, quando eu estava no controle, eu podia fazer as coisas.
— Ah, então você tá muito de boa — percebi.
— É. Só me faltam viver as experiências da faculdade. Dizem que é uma das melhores fases da vida. Eu já fiz umas coisas maneiras, mas… ainda há muito pela frente. Começando pelo curso. Eu fiz, muito mais ou menos, o segundo semestre de Artes Marciais. Vou ter que começar o curso de música do zero. O basquete, eu até gosto, me acho bom, mas… não é meu favorito.
— Você quer mesmo ser cheerleader — concluí.
— É — ele sorriu. — Eu venho de uma família de ginastas, e hipnotizadores. Música, palcos, acrobacias. Tudo isso é meu lance.
— Que legal. Sobre a hipnose, você sabe controlar?
Ele fez uma careta de “é óbvio”.
— Na minha família, a maioria tem esse poder, e somos treinados desde pequenos. Aprendemos a não usar a hipnose, porque ela será maligna na maioria das vezes… mas podemos usar a nosso favor, especialmente em casos de injustiça. Para impedir um crime, apartar uma briga, essas coisas. Também tem a hipnose terapêutica: posso fazer uma pessoa esquecer um trauma, ou lembrar de algo bom da infância.
— Adoraria que você me fizesse esquecer o Guilherme — eu disse, meio sem pensar.
Me sentir ficar pálida, mas Taesung já estava gargalhando.
— Você não precisa esquecer um problema tão pequeno como o Guilherme. Eu poderia até fazer isso, mas precisaria de um laudo psicológico de que essa memória traz problemas graves para a sua vida.
— Uau, então o negócio é sério mesmo — eu disse, admirada. — Fico feliz em saber que você consegue usar seu dom para o bem.
Com essa conversa de hipnose, me lembrei da quase briga da Festa de Junho.
— Você conseguiu identificar quando ele usou hipnose — eu disse. — Na Festa de Junho.
— É — disse ele, pensando. — Acho que os resquícios da minha habilidade me fizeram notar, mas não é tão difícil.
— Você foi muito corajoso enfrentando ele. É louco pensar que vimos aquela coisa toda invertida. Vimos o Vermelho enfrentando o Taesung, mas, na verdade, era o Taesung enfrentando o Vermelho.
— Eu nunca fui com a cara dele — disse ele, com o tom um pouco grave. — Agora é fácil entender o porquê.
Ficamos um tempo em silêncio. Continuei pensando, tentando me lembrar de tudo o que Vermelho havia feito.
— Você dançou com a Sunny, na festa do campeonato — eu disse. — Você gosta dela?
Ele deu um riso soprado.
— Eu seria um cara de muito azar, se gostasse. Não sei o que me deu naquela noite. Eu queria companhia, e foi o que eu disse a ela… só que, talvez, eu só quisesse tirá-la do domínio dele por um tempo. E eu consegui. Ele odiou aquilo.
— Com certeza — eu disse, me lembrando da cena. — E, real, seria muito azar gostar da Sunny agora. Deveríamos estar nos preparando para o noivado.
— Aish, tem isso. Eu não estava nada preocupado, já que Felipe daria conta de tudo. Eu fui olhar a lista dos padrinhos e madrinhas. A princípio, eu estaria com a Maya, padrão e tal. Agora, eu tô com a tal de Ana Laura. Eu nem conheço ela.
— Poxa, faz sentido terem colocado você… ou ele… com ela. Os peguetes dos noivos.
Taesung soltou mais uma gargalhada.
— Que ótimo. Eu fui promovido de “peguete da noiva” a “o cara com quem ela dançou uma vez na vida”.
— Você ainda é amigo do noivo — argumentei, com um sorriso franzido.
— É, real.
— E você ainda tá com sorte. Eu vou ser par do dito cujo.
— Afe, é mesmo — disse ele, parecendo ter muita pena de mim. — A lista deve ter sido feita com antecedência. Não tem chance de vocês se resolverem? Tipo, o senhor Hae deu a entender que foi culpa do Lorde.
— Não me sinto pronta para perdoar o Guilherme, mesmo assim. Ele foi muito babaca. Além disso, ele ainda tá noivo da Nina, não há nada que eu possa fazer.
— É. Bom, talvez ainda dê pra trocar de par.
Um brilho se acendeu em meus olhos.
— Verdade. Bom, a Nala já trocou de lugar com uma garota para favorecer a situação.
— Ah, eu me lembro — disse ele, um pouco irônico. A troca não deve ter favorecido a ele.
— Mas estaria tudo bem pra você, ser meu par?
Ele me olhou com incredulidade.
— O quê? Fala sério, Eduarda… Você é a pessoa mais importante pra mim, literalmente. Seria a melhor coisa do mundo ser seu par mais uma vez.
Talvez eu tenha ruborizado um pouco. Talvez meu coração tenha acelerado um pouco.
“Calma, Duda. Vocês são só amigos. Você acabou de terminar. Não é hora de cavar outra decepção amorosa”.
— Então tá — eu disse, ensaiando um sorriso. — Vou ver se eles deixam.
Começamos a burocracia. Primeiro, mandamos mensagem para Ana Laura. Mesmo tendo certa inimizade comercial com Guilherme, ela prontamente acatou o pedido. Disse que não conseguia imaginar situação mais terrível do que ser madrinha junto com um ex. Com esse aval, mandei mensagem para Minji, que era cerimonialista junto a Seokjung. Ela foi um pouco resistente, mas também aceitou. Disse que não era legal fazer mudanças em cima da hora, mas que foi tudo em cima da hora e a situação era crítica, então ela daria um jeito.
— Tudo resolvido — eu disse, fechando a pulseira. — Somos par, de novo.
Ele sorriu para mim.
— Espero poder dançar com você de novo nessa festa — disse ele, antes de, despretensiosamente, voltar a olhar para o campus.
— Eu também espero — eu disse, imitando-o.
Pensei no que acabamos de conversar, e franzi um pouco o cenho.
Não, ele não poderia estar falando sério. Só querer dançar comigo não era motivo para ele… gostar de mim; mesmo que eu tivesse insinuado isso com a Sunny.
Não, não tinha chance. Mesmo que ele gostasse de mim, era o primeiro dia dele no corpo original em muito tempo. O primeiro dia de uma nova vida. E eu tinha acabado de terminar. Com certeza, era muito cedo para cogitar qualquer coisa.
“Sinto que eu só existi quando estava com você”.
Taesung era só um amigo. Bastante especial, mas um amigo. Eu poderia ser a única pessoa que ele tinha, mas era questão de tempo. Em breve, ele estaria cercado de amigos do cheer e do curso de música.
— Então, quais são os próximos planos?
— Ah, tudo que eu já disse. Focar na faculdade de Música, entrar de verdade para o time de cheer… Ah, esclarecer as coisas com Jihyung, meu roomate… Eu dividi o quarto com ele por alguns dias, ele vai pirar quando descobrir isso. Também tenho um plano de ir ao Baile Mistério hoje, muito bem acompanhado. E quero viver a faculdade. Esportes, clubes, festas e… outras coisas.
Senti que havia algo específico escondido sob a máscara de “outras coisas”.
Ele olhou para mim.
— Duda, eu posso te abraçar?
Me encolhi um pouco, encarando-a. Claro que podia, não era nada demais, mas…
— Isso acabou mal da última vez — eu disse, em tom de implicância.
Nós dois rimos. Ele ficou um pouco sem graça, então eu disse.
— É claro que pode.
Nós dois nos abraçamos. Ele pareceu relaxar, o que realmente me lembrou muito o que aconteceu no dia da piscina.
— Me desculpa — disse ele, com o tom brando. — Eu sei que às vezes eu sou um pouco intenso. Sei que eu não sou a única pessoa importante na sua vida, mas você é tudo o que eu tenho. Aí acaba acontecendo isso, mas eu vou tentar me controlar.
— Não precisa se controlar. Isso é tudo que você tem feito.
Ele deu um longo suspiro.
— Você leva jeito pra terapeuta hipnótica. Me faz esquecer tudo de ruim.
— Oh, não — eu disse, com tom dramático. — Você descobriu meu objetivo secreto.
Ele riu. A risada dele colado em mim era uma boa sensação. Eu o abracei um pouco mais forte. Me imaginei abraçando a figura dele com a qual eu estava acostumada, o Felipe de olhos vermelhos. Ele não tinha nada a ver com o garoto ruivo de olhos roxos com quem eu estava naquele momento, mas era completamente ele.
— Desculpa ter ido atrás de você naquela noite. Eu ainda sinto que tenho uma parcela grande de culpa pelo que aconteceu.
— Para de pedir desculpas, Vermelho.
Senti um aperto no coração pelo deslize, e imediatamente me desculpei.
— Foi mal.
— Acho que eu até prefiro — disse ele. — Foi como você me conheceu.
— Eu ainda tenho um pouco de dificuldade de assimilar, eu confesso.
Ele me soltou parcialmente, deixando seu rosto visível para mim. Seus olhos arroxeados estavam agora bem próximos, mas aquilo tinha um motivo, já que eles repentinamente se tornaram vermelhos, como eu conhecia.
— Isso ajuda?
— Ajuda — admiti. — Mas não se preocupe com o que eu vou achar. Eu sei quem você é. Tem que se sentir bem consigo mesmo.
— Pois é… Estou feliz de voltar a ser eu, mas, ao mesmo tempo… O Taesung que todo mundo conheceu era outro cara. Se eu continuar tendo “Vermelho” como apelido e cor dos olhos, talvez seja mais fácil para as pessoas entenderem quem eu sou. Tudo bem que a reputação do Vermelho não era dos melhores, mas… ainda assim, me parece um bom negócio. O que você acha?
Eu estava perdida nos olhos dele. Acompanhei de forma vaga o raciocínio, mas havia um fato: os olhos vermelhos me fizeram enxergá-lo mais claramente. Eu vi, neles, tudo o que eu vi quando ele me confidenciou seus fantasmas naquele corredor. Eu vi neles a alegria e cumplicidade dos ensaios para a Festa de Junho. O pavor e a ansiedade da noite na piscina.
— Duda? Ouviu o que eu disse?
— Ouvi — confirmei com a cabeça. — Eu gosto da ideia. Gosto que você seja o Vermelho a quem eu me apeguei.
Ficamos alguns segundos em silêncio; segundos do tipo que parecem durar uma vida.
— Suponho que eu deva te soltar agora — disse ele, sem parecer muito à vontade. — Para não acabar mal.
Franzi os lábios. Eu sabia que já era.
— Fala a verdade, Vermelho — eu disse, baixo. — Na noite da piscina, pelo menos um pouco de você queria que acabasse mal?
Ele também franziu os lábios, o que era quase uma confissão.
— Não tente me transformar no vilão da história, Eduarda — disse ele, com um tom um pouco provocativo. — Você era comprometida. E eu jamais te beijaria à força.
— Que menino bonzinho — elogiei.
— E você?
— Ei — protestei, prendendo o riso. — Você mesmo disse. Eu era comprometida, e nem sonhava que você poderia ter segundas intenções.
— Eu não tinha. Não mesmo. Mas talvez eu tenha agora. Sem pressão.
Ergui as sobrancelhas, um pouco debochada.
— Nossa, eu nem reparei — eu disse, irônica.
A respiração dele falhou por um momento, me fazendo temer que aquele garoto pudesse ter um piripaque.
— Eu tô sendo muito rápido? — perguntou ele, receoso.
“Sim!”, eu pensei, imediatamente; mas eu já tinha cansado de tentar me convencer de que era muito cedo para entrar em um novo romance.
— Rápido? Já vão começar as provas e você ainda não beijou ninguém na faculdade — eu disse, mas logo me lembrei dos beijos acidentais com Maya. — Ao menos, não de forma intencional.
Ele juntou as sobrancelhas, sorrindo; um misto de alegria, comédia e comoção.
— Que calouro da minha parte. Em minha defesa, eu ainda não comecei a faculdade. Me considere um ingênuo aluno recém-saído do Ensino Médio. Um admirador das artes cênicas, amante à moda antiga, colecionador de traumas, que precisa que uma bela moça universitária deixe claro seu consentimento.
Eu neguei com a cabeça. Queria mandar ele calar a boca e me beijar, mas isso seria muito rude com aquele garoto recém-nascido.
— Isso vai acabar mal — eu disse. — E vai ser muito bom. Você não precisa mais se controlar, Vermelho.
Mesmo com autorização, encenação e tudo, demoramos mais um tempo para nos aproximar. Ficamos ensaiando, fingindo; nos deixando passar pela deliciosa tortura do quase, que também faz parte do fim. Deixei minha mão contornar a orelha dele, enquanto ele puxava alguns cachos rebeldes para fora do caminho. Com os olhos semicerrados, mantivemos nosso jogo. Trocamos respirações, fingimos que íamos, encurtamos a distância. Roçamos os lábios.
— Caralho, que enrolação, gente… beija, logo!
Me segurei muito para não rir do comentário aleatório de um aluno desconhecido que passava no corredor.
— Para de ser trouxa, deixa eles! — disse outra aluna.
A gente já estava bem no quase, então acatamos o incentivo. Sob os aplausos e gritinhos dos alunos de Química, deixei os lábios de Taesung/Vermelho molharem os meus. Segurei o rosto dele me deixei sentir tudo o que estava evitando: o arrepio da pele, o descompasso do coração, a irregularidade da respiração, a firmeza dos toques. Um beijo intenso e interminável, com um desejo que só crescia, mas também havia calma e conforto. A sensação de pertencimento. De estar no lugar certo, feliz e completa.
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